quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A palavra e o humano


A construção do humano
O valor incomensurável da palavra



Decidi começar este dia compondo um texto que patenteie a importância e o valor da palavra (em certos momentos, o leitor deverá subentender “linguagem”) para a vida e a história dos seres humanos. Certamente, isso não é novidade nenhuma, exceto pelo fato de que, hoje, alterei a ordem de meus hábitos rotineiros; em geral, levanto-me e me entrego ao convívio com os livros, somente depois, se algumas ideias elevadas visitarem meu espírito, ponho-me a escrever. Ler é sempre mais importante; desta atividade edificante depende a produção da escrita.
No Ocidente, o interesse pelo estudo da linguagem remonta a Platão, no século V a.C. Desde então, a linguagem se tornou objeto de especulação filosófica e a filosofia passou a contribuir decisivamente, com a gramática, que na Idade Média compunha com a retórica e a dialética o que se chamava de trivium, para o desenvolvimento dos estudos linguísticos. Aliás, toda a nossa herança gramatical, a chamada Gramática Tradicional, está fundamentada na contribuição filosófico-filológica, orientada com uma finalidade pedagógica. Nas palavras de um abade da era medieval é possível mensurar a importância do estudo da gramática para os homens, segundo a crença da época: “a gramática prepara a mente para entender tudo que possa ser ensinado por meio das palavras” Azeredo: 2000:17).
É pelo estudo da linguagem que se pode compreender a natureza humana (muito embora o conceito de natureza humana seja discutível). Em todo caso, o estudo da linguagem desempenha um papel importante na compreensão da estrutura e organização da mente humana, como propunha o linguista Noam Chomsky, na segunda metade do século XX.
Não é da história da evolução do pensamento linguístico de que me ocuparei aqui, evidentemente. Se assim o fizesse, teria de contar com a paciência de leitores iniciados na história do desenvolvimento dos estudos da linguagem ao longo dos séculos. Meu intento é trazer a lume a consciência da onipresença das palavras em nossas vidas e de sua importância na construção da realidade e nas experiências humanas.
A criança, tão logo nasce, torna-se integrante de um universo impregnado de palavras. Todo o seu desenvolvimento subsequente se fará num mundo construído ou tecido de palavras – um mundo, aliás, inundado em palavras. Ela estará, assim, cercada de palavras o tempo todo; todas as suas relações, suas experiências de mundo, se darão graças às palavras e através delas.
É a linguagem verbal – portanto, a materializada em palavras, organizadas num sistema linguístico -, (e não incorro em erro ao afirmar isto), que constitui a essência humana. Os seres humanos – o homo sapiens – são seres linguísticos (homo loquens). Não haveria possibilidade de existir esse meio de trocas, de relações, que conhecemos como sociedade, se não houvesse a linguagem – base fundamental de toda sociedade humana.
O linguista Hjelmslev dá-nos testemunho do valor incomensurável da linguagem no seguinte trecho (que não transcrevo na íntegra, dada a sua extensão):

“A linguagem (...) é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos (...) base última e mais profunda da sociedade humana. (...) A linguagem não é um simples acompanhante mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala [sic. Linguagem] é a marca da personalidade da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade (...)”.
(Os pensadores, p. 179)


O texto em que Hjelmslev poeticamente nos fala sobre o valor da linguagem excede os limites nos quais deverá se desenvolver este texto, por isso tive de reduzi-lo. No entanto, a redução não nos impede de entrever a riqueza da linguagem como um fenômeno que atua, que penetra todo domínio humano. Chamo atenção para a relação entre linguagem e emoções, depreendendo daí a importância da relação entre as emoções e nossa língua materna, pois que é ela que carreia toda carga emocional dos seus falantes. Não é a mesma coisa manifestar raiva, amor, etc., e mesmo xingar numa língua estrangeira, como o é em nossa língua materna. Ou seja, como a língua materna esteja intrinsecamente ligada ao nosso ser emocional, social e a nossa identidade, um shit, em inglês, não terá o mesmo impacto ou densidade de expressão de nossa raiva, que um merda (proferido com entoação e altura adequados), em português.
Essa entidade – a palavra – estudada sob várias perspectivas, encarada como signo, cujas faces são interdependentes e foram chamadas de significante e significado, preenche uma ausência, está no lugar de outra coisa (esse é o valor do signo: ser signo de outra coisa). A palavra, na verdade, preenche o vazio, mas também pode inaugurá-lo; vazio e plenitude se relacionam dialeticamente. Em matéria de língua, a ausência significa; isso fica claro quando pensamos a oposição significativa existente entre estuda/estudava que, em morfologia, explicaríamos pela oposição entre uma ausência de marca (marca-zero) e a presença da marca –va (chamada de morfema ou desinência número-pessoal). Essa ausência significa, pois nos informa sobre o tempo em que o verbo estudar está flexionado (presente). Por outro lado, a desinência –va indica o tempo pretérito imperfeito. Como se vê, a palavra é dissecada, na morfologia – um dos domínios teóricos da gramática (como modelo descritivo de língua); tratada em suas relações complexas, agrupadas em blocos de significado, na sintaxe; e encarada como matéria substancial do texto e do discurso, respectivamente, na Linguística Textual e na Análise do Discurso. Neste último domínio, a palavra é parte constitutiva da materialidade linguística do discurso, que, por sua vez, é encarado como um acontecimento (sócio-) histórico.
Bakhtin, eminente filósofo e linguista russo, considerava a palavra como signo ideológico, meio de contato entre a nossa consciência e o mundo, entre o nosso interior e o exterior. Aqui, já estamos no domínio da História, do socioideológico, de sorte que devemos reconhecer que as palavras são tecidas de inúmeros fios ideológicos. Assim é que a palavra refletirá e refratará a realidade. Isso quer dizer o seguinte, segundo as palavras de Stella (2005: 179):

“(...) tornando-se signo ideológico porque acumula as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais”.


A palavra, portanto, reflete, na medida em que “acumula as entoações do diálogo vivo” mas também refrata, na medida em que pressiona ou incita mudança na ordem social. Portanto, o discurso é forma de ação social. Os homens agem no/pelo discurso – que é a língua em atividade, em exercício de poder – uns sobre os outros, modificando uns aos outros e a ordem das estruturas sociais.
É graças à linguagem, às palavras, que o mundo se organiza numa estrutura dotada de sentido; é graças à linguagem, na sua função simbólica, que os homens organizam as suas experiências de mundo, tornando-as conteúdos de sua consciência comunicáveis no discurso. Pode-se dizer, seguramente, que a realidade existe na medida em que é nomeada. Os objetos e os seres com que nos relacionamos existem como dados de nossas experiências, na medida em que ganham investimento simbólico, tornando-se, assim, mais do que elementos do mundo natural, tornam-se, sobretudo, entidades do universo cultural e humano. As palavras criam conceitos pelos quais organizamos, interpretamos e compreendemos o mundo. Toda e qualquer forma de conceptualização não dispensa alguma forma de linguagem e, certamente, é nas palavras que os conceitos ganham uma dimensão, uma abrangência e signficância social inigualável.
A cultura, que nos faz humanos, que nos caracteriza como seres sui generis, tem como fundamento o simbólico. Sua organização profunda encontra no simbólico sua substância, sua possibilidade de subsistência. Nossas experiências culturais só são possíveis porque dispomos de sistemas complexos de símbolos ou signos. A língua é, ao mesmo, tempo produto e meio de expressão (e constituição) da cultura. A morte de toda uma comunidade organizada de homens significa também a morte das ricas experiências de cultura e linguagem.
Quando pensamos na História da humanidade, em todo o seu desenvolvimento até o estágio atual da hipermodernidade; quando levamos em conta as produções científicas, filosóficas, artísticas, literárias, folclóricas, os sistemas políticos, as histórias de vilões e heróis, as grandes façanhas dos homens, seus avanços e regressões (suas guerras, genocídios, seus sofrimentos, seus fanatismos, suas crises), suas religiões, suas Leis, suas epopéias e tragédias, sua música e teatro, seus dramas e aventuras; quando pensamos em tudo isso (e possivelmente em outras coisas mais que a estreiteza de meu espírito não conseguiu apreender), nos apercebemos da onipresença das palavras no longo e complexo processo do fazer-se humano.
Dormimos com as palavras, que habitam nossos sonhos (pois falamos nos sonhos); acordamos e vivemos nosso cotidiano com elas; elas não se apartam de nós; mesmo quando em silêncio, são as palavras mudas, em forma de pensamento não-comunicado, que ficam a passear em nossa mente. O pensamento conceitual é a palavra muda, é a linguagem verbal. Não há possibilidade de pensamento conceitual sem linguagem. As palavras estão em nós e nós somos graças às palavras. Nossa relação com a palavra pode-se dizer dialética, visto que nós a constituímos (no discurso) e por elas somos constituídos.
É certamente a linguagem constitutiva de nossa identidade. O “eu” se constitui na interação pela palavra, constituindo o “eu do outro”, e por este outro-eu é também constituído. Pelo domínio da palavra, pela prática do discurso, se dá a construção intersubjetiva dos interactantes. Eu sou e me construo como sujeito social, ideológico e, portanto, como sujeito de discurso, na interação com o outro (alteridade), pelo uso da palavra, sócio-historicamente situado.
As palavras inflamaram os espíritos dos grandes escritores e poetas da Literatura Mundial. Os Byrons, os Machados, os Azevedos, os Flaubert e tantos outros ilustres homens da pena souberam como ninguém reconhecer e explorar a riqueza humana e significativa da palavra, para construir seus universos conflituosamente líricos, impregnados de uma riqueza sentimental, social e histórica inestimável. Werther amou Carlota e se matou com a arma em que sua amada tocara, quando se viu impossibilitado de viver o amor que lhe requestava, um amor que projetava na imagem de mulher que lhe perturbava a alma; essa imagem não fora senão construção de suas palavras, das palavras que teciam sua alma apaixonada e ardente em desmedido lirismo. Pelas palavras, amamos, desejamos, adoramos, devotamos, rejeitamos, odiamos, agredimos; com elas, vivemos mergulhados nos mais intensos e convulsos sentimentos. Com elas, nossos prazeres ganham concretude inefáveis; os poetas travam lutas incessantes com elas, pois sua riqueza é empobrecida em face da sede de expressão que faz mover a mão que segura a pena. O coração se recusa a calar-se diante do silêncio das palavras; ele grita, ele geme, ele pulsa, em suas agitações líricas; quer expandir-se, em que pese à escassez das palavras; elas se tornam insuficientes para dar conta do vastos hectares de emoções de que ele é feito.
Este texto foi motivado pelo amargo sentimento que experimentei, quando na interação com uma moça, a quem meu coração ainda se demonstra inclinado, o silêncio preencheu o vazio das palavras. Talvez, como o silêncio seja fundante e esteja nas palavras e por detrás delas – como ensina a Análise do Discurso -, é possível que aquele silêncio que sustentava as poucas palavras e sua ausência signifique alguma coisa: ou a urgência por que nosso relacionamento transcenda a distância real, superando, consequentemente, a proximidade virtual; ou, quiçá, apenas signifique o prenúncio de mais um fracasso de minhas pretensões amorosas, de minhas dileções insanas. Nesse sentido, as palavras não bastam para indicar-me em qual dos caminhos a vida se encarregará de me conduzir; pois elas estão mudas.
E, finalmente, é preciso notar, estimado leitor, que não há possibilidade de relação, se as palavras se tornarem escassas; um relacionamento sem palavras, sem produções verbais, é empobrecido, é miserável e tende a se dissipar como cinzas lançadas ao vento da desilusão.

sábado, 25 de setembro de 2010

A liquedez do amor


A Transmutação do Amor
Da era romântica à modernidade líquida



1. Introdução

Não é novidade, pelo menos, para os seguidores de meu blog, que minha principal ocupação é o convívio com os livros e o meu envolvimento com o pensamento reflexivo. Tudo que me sabe à alma torna-se matéria para férteis reflexões. E um dos temas de que mais me ocupo é o amor; talvez, porque, na impossibilidade de experienciá-lo num relacionamento com uma mulher que seja recíproca às minhas aspirações amorosas, só me reste tomá-lo para matéria de meditação e discussão. Quiçá, poder-se-ia ver nessa tendência uma forma de sublimação, tal como a definiu Freud, ou seja, a frustração acarretada pela impossibilidade de experienciar o Amor (com maiúscula!) é compensada com longas horas de reflexão sobre as formas como ele se manifesta, mormente em nossa modernidade líquida.
Não obstante, esta exposição, em particular, é motivada por uma questão que me tem visitado o espírito há algum tempo e sobre a qual, finalmente, poderei dizer algumas coisas: existe amor romântico nos tempos de hoje? Qualquer resposta que se dê não pode dispensar uma reflexão sobre o que é o amor romântico, sobre a origem/história dessa forma de amor, suas implicações ideológicas, sua relação com os gêneros (masculino/feminino); enfim, não pode tomá-lo como objeto independentemente de contextos sócio-históricos e ideológicos específicos. Assim, pensarei o amor romântico como fenômeno sócio-histórico.
Acrescente-se ainda que, ao abordar o amor romântico, em particular, não ignorarei a necessidade de refletir filosoficamente sobre a ideia de amor, tal como nos foi legada pela tradição clássica filosófica. Para tanto, tomo como referências as obras Banquete, de Platão, e Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de Comte-Sponville, onde encontraremos a concepção fundamental de amor como desejo por aquilo que nos falta – o amor como carência, portanto. Discutirei essa concepção alhures.
A maturidade intelectual, decorrente do convívio aturado com os livros, bem como a experiência acadêmica, que já data de nove anos, ensinaram-me que toda questão que se pretende discutir à luz de uma reflexão teoricamente orientada não pode escusar a devida contextualização, ou seja, ela deve ser situada relativamente a certas variáveis pressupostas pela perspectiva teórica. Assim, com vistas a escapar ao senso-comum, reproduzir os lugares-comuns, as fraseologias agastadas, as opiniões correntes e vulgares, todo pensador deve esforçar-se por fornecer à sua audiência ou aos seus leitores, um cenário no interior do qual a questão que se propõe examinar seja devidamente situada, para que ela não fique à deriva ou margeando meras especulações despropositadas.
Este texto se apresenta, portanto, dividido em seções, porquanto acredito ser este um procedimento satisfatório para o atingimento da referida contextualização. Ademais, penso se tratar de um recurso didático que facilitará a leitura e compreensão do texto, cujo tema é, claramente, complexo.


2. A modernidade líquida: o imperativo do novo


É em Bauman que busco as bases para fundamentar o contexto sócio-histórico em que minha reflexão sobre amor romântico se desenvolverá. Escreve o autor, na obra Vida Líquida (2009:7):
“”Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação , em hábitos e rotinas, das formas de agir”.
Assim é que permanência e constância são valores improváveis em tais formas sociais de existência, cujos valores fundamentais são a fugacidade e a inconstância, reforçadas pela necessidade do novo (novos filmes, novas canções, novas novelas, etc.). No âmbito ideológico, tudo que remeta à estabilidade e à permanência é sinal de tédio e provoca sensação de aprisionamento. Manter vínculos mais duradouros representa manter-se num estado de aprisionamento.
Como bem observa Bauman (p. 8), “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Se a única constância é a que diz respeito à incerteza, é claro que, com tais condições, confiança, solidariedade e estabilidade, valores exigidos por experiências amorosas com aspiração romântica, são incompatíveis, não passando de fumaças de delírios juvenis.
A sociedade líquida é caracterizada pela descartabilidade, inerente ao consumo de massas. A necessidade de consumo desmedido é alavancada pela fantasia, como herança do Romantismo. A fantasia, herdeira dos ideias românticos, faz surgir o consumidor moderno. Destarte, para Campbell (2001: 130), os consumidores são motivados pela necessidade de buscar um prazer imaginativo, que acreditam ser alcançável na imagem do produto. Essa busca ininterrupta se sustenta na conservação dos consumidores num estado de insaciabilidade permanente.
Embora intente destinar uma seção própria para me ocupar da questão da sexualidade relativamente ao amor, é necessário, desde já, apontar a supervalorização do corpo, alçado à condição de capital, na modernidade líquida, consoante nos ensina a antropóloga Mirian Goldenberg, em seu livro O corpo como capitalestudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. No artigo Corpo como capital, atendo-se à realidade brasileira, particularmente à do Rio de Janeiro, a autora nos ensina:
“No Brasil, e mais particularmente no Rio de Janeiro, o corpo trabalhado, cuidado, sem marcas indesejáveis (rugas, estrias, celulites, manchas) e sem excessos (gordura, flacidez) é o único que, mesmo sem roupas, está decentemente vestido. Pode-se pensar, neste sentido, que, além de o corpo ser mais importante do que a roupa, ele é a verdadeira roupa: é o corpo que deve ser exibido, moldado, manipulado, trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido, construído, produzido, imitado. É o corpo que entra e sai de moda (...)”.
(p. 47)
Penso a relação entre o consumo de bens culturais (mercadorias) e a supervalorização do corpo (capital), na sociedade líquido-moderna, em dois sentidos: num primeiro sentido, está claro que o consumo se destina também à conservação/construção do corpo (investimentos em lipoaspiração, dietas milagrosas, cirurgias plásticas, academias de ginástica e musculação, etc.); num segundo sentido, uma sexualidade experienciada apenas para o corpo acaba por desbordar para um consumo desenfreado de corpos.
Relacionamentos apenas experienciados sob o regime ditatorial dos corpos (transformados em capital), em condições consumistas, hedonistas e utilitaristas de existência social, estão fadados ao fracasso, dado o inevitável envelhecimento e perecimento do corpo. Não se trata, aqui, evidentemente, de negar a possibilidade de experienciar o amor carnal – o amor pode e deve também encontrar inspiração no enlace dos corpos, manifestado no sexo -, mas deve, uma vez que se pretenda uma experiência transcendente, humanamente mais significativa, fincar suas raízes em um terreno que ofereça nutrientes mais profundos, sem os quais esta forma de amor não será outra coisa, senão uma conexão circunstancial e efêmera.
É ilustrativo da condição do corpo como capital e da supervalorização que se é dada a ele o que nos relata a autora a respeito de uma pesquisa feita com homens e mulheres da cidade do Rio de Janeiro, pertencentes às classes mais favorecidas:
“Também com relação à atração entre os sexos, o corpo tem um papel fundamental. Ao perguntar: O que mais a atrai em um homem? As pesquisadas disseram a inteligência e o corpo. Para a questão: O que mais o atrai em uma mulher? Os pesquisados responderam a beleza e o corpo. Quando a atração é sexual, o corpo ganha um destaque ainda maior. Na pergunta: O que mais a atrai sexualmente em um homem? As mulheres disseram o tórax e o corpo. Para: O que mais o atrai sexualmente em uma mulher? As respostas masculinas foram a bunda e o corpo.”
(p. 51)
Novamente aqui, é preciso enfatizar que não se trata de denegar o corpo como fonte de estímulo para o sexo; afinal, não há sexo de almas, mas de corpos. Curioso é que, entre as mulheres, qualidades como ‘inteligência’ ainda competem com ‘o físico’, no que toca aos atributos masculinos que as atraem; ao contrário, os homens se sentem atraídos sexualmente apenas por mulheres dotadas de atributos corpóreos.


3. O amor romântico e o amor paixão


Doravante, dedicar-me-ei a refletir sobre o amor romântico e seu correlato, o amor paixão. É preciso, contudo, situar a reflexão em dois domínios: o do imaginário e da realidade sócio-histórica. Ambos são atravessados pelo ideológico.
Em Banquete, ao nos contar sobre o diálogo que travou com Diotima, Sócrates ensinará ser o amor uma carência ou um falta. O amor é desejo do que falta. O objeto do amor é sempre uma falta. Só amamos aquilo que nos falta e que, portanto, não possuímos. O amor é incompletude, é pobreza ávida por devorar. A natureza miserável de Eros decorre de sua origem, já que ele é filho de Pênia, a penúria. O amor é também desejo por fusão irrealizável. Ensina-nos Sponville:
“O amor não é completude, mas incompletude. Não fusão, mas busca. Não perfeição plena, mas pobreza devoradora (...) o amor é desejo, e o desejo é falta”.
(p. 252)
O amor romântico é o amor da desmesura, do exagero e da impossibilidade. É uma forma de amor incompatível com a luxúria, pois que inspirado e alimentado pela alma. Sua consumação pelo sexo representa seu arrefecimento. É na conservação do seu desejo, na busca pelo objeto idealizado e inatingível, pois que também sublimado, que encontra sua vitalidade e sobrevivência. É amor de transcendência, de projeção e idealização. O amor romântico supervaloriza a palavra ou os atos e gestos comunicativos como formas simbólicas de magnetismo entre espíritos. Também é amor que promove um autoquestionamento e propicia aos parceiros a possibilidade de (re)pensar a complexidade do envolvimento emocional; é, portanto, auto-reflexivo.
Decerto, o amor romântico é amor feminilizado, sua força ou vigor encontra-se na alma feminina. Contudo, considerando-o como fenômeno sócio-histórico, é preciso, em primeiro lugar, situar seu surgimento no final do século XVIII e reconhecer que com ele inaugurou-se uma ideologia de casamento e maternidade que subordinava a mulher ao lar e ao relativo isolamento no seio da família. Assim, escreve Giddens:
“A idealização da mãe foi parte integrante da moderna construção da maternidade, e sem dúvida alimentou diretamente alguns valores propagados sobre o amor romântico. A imagem da “esposa e mãe” reforçou um modelo de “dois sexos” das atividades e dos sentimentos”. As mulheres eram reconhecidas pelos homens como sendo diferentes, incompreensíveis – parte de um domínio estranho aos homens”.
(p. 53)
Claro está que, após as conquistas dos movimentos feministas e da chamada revolução sexual, desencadeada na segunda metade do século XX, é inaceitável – embora ainda presente – que se sustente a ideologia romântica da maternidade (“as mulheres nasceram para ser mães, elas têm uma natureza materna”) e da “esposa” (a mulher “respeitável” e dona do lar), visto que não só o direito e o poder sobre a condução de sua própria sexualidade, bem como sua maior participação nas esferas de produção, foram conquistas que contribuíram para maior igualdade em termos de condições sociais entre elas e os homens, muito embora a maior imersão de mulheres no mercado de trabalho não tenha significado o abandono completo das tarefas do lar. Em geral, o que se observa é uma sobrecarga de tarefas ou, em outras palavras, o acúmulo de funções.
Por outro lado, como ensina Giddens (1993), “(...) a fusão dos ideais do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade” (p. 55). O amor romântico manifestava-se, na literatura, especialmente, em formas de romances, destinados ao público feminino. Neles, os espíritos feminis buscavam o êxtase e a compensação para suportar uma existência social ainda limitada pelo poder do homem. Os ideias românticos serviram de apoio às mulheres na construção de sua autonomia, não obstante viverem uma vida de privação.
O amor romântico é amor que nega o mundo e que deseja a fuga. O ápice desta fuga, como nos dão testemunho inúmeros exemplos da literatura, é a morte. Na história do amor romântico, não há páginas felizes; estas estão sempre em branco.
O amour passion ou amor paixão tem caráter libertador, visto que quebra os grilhões da rotina e do poder. É essencialmente subversivo, infenso às urgências e incumbências do cotidiano. Seu envolvimento é mais invasivo; conturba a estabilidade do espírito.
Convém entender a sexualidade como integrante das relações sociais, portanto, como um fenômeno sócio-cultural, intimamente ligado ao poder. A teorização da sexualidade ensejou a possibilidade de exercer sobre ela um controle maior pelas instituições que se apóiam na autoridade dos especialistas. Como ensina Giddens, se na Europa pré-moderna, notadamente no século XVII, a sexualidade ainda estava vinculada à mera necessidade de reprodução, com a revolução sexual, a sexualidade passou a ser encarada como forma de obtenção de prazer.
“A liberdade sexual acompanha o poder e é uma expressão do poder; em certas épocas e locais, nas camadas aristocráticas, as mulheres eram suficientemente liberadas das exigências da reprodução e do trabalho rotineiro para poderem buscar o seu prazer sexual independente. Evidentemente, isto jamais esteve relacionado ao casamento”.
(p. 49)
Ideais veiculados pelo amor romântico ainda parecem impregnar a consciência feminina. Giddens, citando uma pesquisa desenvolvida por Thompson com moças adolescentes, oferece-nos o seguinte testemunho de uma das adolescentes entrevistadas:
“Desejo o relacionamento ideal com um rapaz. Acho que quero alguém que me ame e cuide de mim, tanto quanto eu dele”.
(p. 65)
(grifo meu)
Note-se que a adolescente fala em um amor que cuide, uma forma de amor idealizada por muitas mulheres e cuja expressão fidedigna parece ser o da mãe pelo filho.
Para Giddens, a modernidade caracteriza-se por uma forma de amor que fragmenta os valores do amor romântico, a saber, o amor confluente, que é um amor ativo, que resiste ao “amor para sempre” (ideal tipicamente romântico). Escreve o autor:
“Na época atual, os ideais de amor romântico tendem a fragmentar-se sob a pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina. O conflito entre a ideia do amor romântico e o relacionamento puro assume várias formas, cada uma delas tendendo a tornar-se cada vez mais revelada à visão geral como um resultado da crescente reflexividade institucional”.
(p. 77)
A tendência cada vez maior de rupturas de casamentos é, segundo o autor, consequência do amor confluente. Ao contrário do amor romântico, cujas bases se assentam no envolvimento emocional entre duas pessoas, o amor confluente dá especial valor a critérios sociais externos, tais como estabilidade econômica, poder, etc. Essa última forma de amor é sensível às flutuações das experiências sexuais que se tornaram fundamentais para a manutenção ou, no caso de seu fracasso, para a dissolução do vínculo.
Bauman, em Amor Líquido, à página 111, comenta o conceito de “relacionamento puro”, de Giddens, que se caracteriza “pelo que cada um pode ganhar”. Sua continuidade depende de que ambos os envolvidos se sintam satisfeitos com o quanto cada qual proporciona em termos de prazer um ao outro. Consoante observa Bauman,
“O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o compromisso incondicional e certamente aquele do tipo “até que a morte nos separe”, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a todo custo”.
Ao considerar as experiências sexuais nas formas ditas de suingue ou trocas de casais, Baumam se pergunta:
“Será possível encontrar lá [nos clubes de suingue] a intimidade, a alegria, a ternura, a afeição e o amor? Bem, o visitante pode dizer de boa-fé: isto é sexo, seu estúpido – não tem nada a ver com nada disso. Mas se ele ou ela estiver certo(a), será que o sexo em si é importante? Ou que, seguindo Sigusch, se a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo, “então o mais importante não é o que se faz, mas simplesmente que aconteça”.
(p. 72)
Creio ser importante reconhecer que a liberação sexual libertou o sexo das complicações do amor; em outras palavras, para o sexo, não é necessário envolvimento afetivo-emocional, administração de subjetividades e de personalidades. O amor torna-se o terreno do ideal e jurisdição da alma; ao passo que o sexo é do domínio exclusivo de um corpo que se transformou em capital. Essa dissociação entre sexo e amor e a decorrente polarização entre sexo-corpo, de um lado; e amor-alma, de outro, bem como o fato de os relacionamentos serem experienciados segundo a lógica do “custo-benefício”, de modo que sua manutenção ou dissolução depende do balanceamento de vantagens e desvantagens, da contabilidade de ganhos e débitos, inviabilizam a revitalização dos valores do amor romântico que, não deixando de ser sexual, idealiza a união plena entre alma e corpo.

4. A morte dos românticos

Finalmente, gostaria de insistir em que os que se autoproclamam românticos o fazem de modo distorcido ou mesmo empobrecido. Os homens que se cuidam românticos apenas pelo fato de serem mais carinhosos, atenciosos e gentis, ou mesmo de ofertar às suas namoradas/ esposas buquê de rosas, acabam por confundir ser romântico com parecer romântico. Tais gestos estão longe de representar a essência do movimento espiritual e o ideário românticos.
Alfredo Bosi (2006), eminente crítico literário brasileiro, nos lembra que o Romantismo, como fenômeno histórico, “expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas” (p. 91) (na época, a nobreza a vias de sucumbir e a emergência da burguesia). O romântico é, pois, um ser social descontente, inconformado com a realidade em que vive; negação do mundo e da sociedade, ele encarna os ideais mais sublimes de amor, de mulher, da pátria, da religião. Parece-me difícil pensar o romântico numa época em que muitos vivem comodamente no/com o mundo, numa época em que predomina o conformismo. O romântico exacerba sua sensibilidade e injeta em sua alma sentimentos inflamados pelos quais orienta suas experiências afetivas e sexuais.
No romântico, ver e sentir é um só; ver e sentir se constituem numa forma una de compreensão da realidade e do Outro. A vida é um obstáculo à eternidade do amor que idealiza; a morte, a fuga última às desilusões inevitáveis de uma existência que não lhe é hospitaleira.
Por isso, desconfio daqueles que, em programas televisivos, por exemplo, quando interrogados de suas tendências emocionais, dizem-se românticos. Se o leitor concordar em que, na modernidade líquida, em que as conexões entre homens e mulheres constituem a forma prevalecente de experienciar a sexualidade e a afetividade, então deverá aceitar a morte do amor romântico, pelo menos no que ele tem de mais significativo para a espécie humana.

domingo, 19 de setembro de 2010

Poema - Renovação




Renovação


Um amor cuja ausência move
Montanhosos cadáveres, então ausente
Este amor sacro faça toda a orbe
Ser tragada como antro delinqüente!

Um amor diabolicamente terno
Que fizesse toda gente crente
Ver, assim, com assombro penitente
Um sacro Altar emergindo do Inferno

E neste mundo um angélico ventre pálido
Das agruras do poeta vertesse o mérito
Que à sombra da lápide a Deus lembrasse

Que o poeta nutriu amor como o Vigário
Amou vertiginosamente todo útero etéreo
Como nuvem pálida que acalma a Tempestade!
(BAR)

Poema - Doze anos




Doze anos

Ah! Ter doze anos! Minh’alma de menino,
Libar doces fragrâncias! Sentir inocentes emoções!
Menear a bola no betume túmido, altivo
Idear o goleador de apaixonados corações!

Ah! Tornar aos tempos de lúdicos verões!
Acolher-me às peripécias de adolescentes paixões!
Sorrir às burlescas piadas. Gozar de ingênuos ardores!
Brincar de pique-pega. Fugir a doidos amores!

Ter no coração o Reino dos Céus
Legado de Deus aos pequeninos
Ser Super-Herói. Na janela, os sapatinhos...

Ah! Ter doze anos! Quanta ventura!
Ignorar o fascínio da Lua!
E não lamentar das auroras a amargura.



(BAR)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Quantos amores é possível experienciar? Decerto, muitos, mas muito poucos serão capazes de levar nossas almas a imergir em suas profundezas.





Das conexões aos relacionamentos
O amor descartável



Em matéria de amor, ficamos sempre à deriva,
boiando na superfície das conexões, à espera de um salva-vidas. (BAR)


       É comum ouvirmos pessoas dizerem ter acabado de sair de um relacionamento; difícil é ouvi-las dizer que estão entrando num. Acontece que, não raro, elas entram, mas se esquecem de fechar a porta, ou porque ainda não encontraram a tal “chave do amor”, ou porque a confiou ao parceiro, que, por descuidado, perdeu-a.
É sintomático este fato, uma vez que essa tendência a sair de relacionamentos frequentemente é consequência inevitável das experiências vividas em relacionamentos epidérmicos, frágeis, descartáveis, carecidos de profundidade. As pessoas que só conheceram esse modelo de relacionamentos, que também se caracterizam pela fluidez e inconstância, tendem a se sentirem inseguras e receiam arriscar-se num novo relacionamento. Está clara, pois, a crise de que sofrem as experiências de Eros, na cultura pós-moderna das imagens e simulacros: quanto mais relacionamentos líquidos, frágeis e efêmeros experienciamos tanto mais desesperançosos e inseguros ficamos. Em decorrência disso, há certa descrença generalizada no amor; uma descrença acompanhada, ou melhor, decorrente de uma lucidez. Parece-me que as pessoas, pelo menos, reconhecem não serem aquelas experiências descartáveis a expressão do amor, tal como se lhes afigura ao espírito.
A primeira questão que se me apresenta ao espírito e cuja resposta tentarei propor é: como tornar possíveis experiências de relacionamentos que difiram dos modelos oferecidos pela sociedade de mercado e de imagens?
Na impossibilidade de experienciar o amor, resta-me refletir sobre ele, o que me tem sido uma forma de sublimação, da qual nos fala Freud. Escrevo sobre amor, para que eu não fique por aí papagaiando lugares-comuns, lamentando e verbalizando as mesmas opiniões correntes a respeito da dificuldade de se viver relacionamentos mais sólidos, constantes, intensos e duradouros. O que me proponho aqui é tentar compreender, baseando-me nas leituras que fiz, em que contexto sócio-cultural, econômico e ideológico devemos situar as experiências de relacionamentos epidérmicos. É esse contexto que nos fornecerá a chave para compreendê-los e para, se possível, propor alternativas.
Começo, pois, fazendo um ajuste conceitual, bem como destacando as características mais evidentes das relações afetivas entre homens e mulheres na sociedade do mercado e das imagens. O ajuste, então, consiste em substituir a palavra relacionamento por conexão, com vistas a expressar a fragilidade dos vínculos; ademais, trata-se de um termo bastante sugestivo, já que captura bem a tendência a transpor as formas de relacionamentos que se dão nos espaços cibernéticos da internet para as esferas de relações da vida real e cotidiana. Empregarei, por outro lado, a palavra relacionamento sempre que me referir a formas de relação caracterizadas por constância, durabilidade, intensidade, profundidade, características essas sugeridas pelo sufixo “-mento”, que figura também em “enredamento”, “entrelaçamento”. Creio em que relacionamento deve ser vivido como uma espécie de entrelaçamento de almas e corpos.
Também é necessário definir o que eu entendo por amor. Parece-me que o amor ideal deveria expressar-se pela adequada comunicação entre almas e entre corpos; amar com alma e com corpo é entregar-se de corpo e alma. O amor ideal é, pois, resultado dessa entrega, dessa afinidade entre almas e corpos. Estando consciente de que tudo que toca ao âmbito do idealismo está fadado à não-realização, justamente porque é ideal, proponho que o amor que tantos dentre nós desejamos experienciar deve ter (admitindo-se variações subjetivas), pelo menos, duas características básicas: o zelo e o amparo. É possível que desejemos e busquemos o amor que cuida, que zela, que ampara; decerto, muito diferente dessa forma de amor frágil, inconstante, que tende a desamparar, e cujos exemplos são fartos.
As conexões, até onde pude perceber, têm as seguintes características:
· Descartabilidade;
· Promiscuidade;
· Liquidez;
· Inconstância;
· Superficialidade;
· Esvaziamento;



Tais características, conforme mostrarei, parecem adequar-se às formas de se relacionar na sociedade de consumo de imagens, cujos indivíduos destituídos de capacidade crítica, tornados meros consumidores, ao invés de cidadãos, no sentido próprio do termo, a saber, indivíduos capazes de atuar criticamente, porque intelectualmente emancipados, não parecem conseguir ver para além dos simulacros e das imagens da sociedade do espetáculo.
As sociedades de massa e a saturação das imagens
É no livro Formas da crise – estudos de literatura, cultura e sociedade (2002), que André Bueno nos apresenta o que caracteriza fundamentalmente as sociedades (pós)modernas ou, como sugere Gilles, hipermodernas:
“Talvez o tema mais constante, quase corriqueiro, que tem se apresentado ao debate acadêmico seja o das imagens superficiais e fragmentadas que compõem a presente etapa das sociedades urbanas de massa. Pela via do desencanto, onde não cabe qualquer projeto de emancipação política e social, teríamos o seguinte, e curioso, retrato do presente: um mundo vazio, de fragmentos à deriva, feito de simulacros, de imagens, de superfícies vazias, destituídas de qualquer espessura histórica ou humana”.
(p. 257)



Este mundo de simulacros e imagens é o mundo da mercadoria. Nesse mundo, enfatiza-se cada vez mais as trocas de mercadorias, às quais se associam liberdade e pluralidade. A despeito desta sensação de liberdade e evidência de pluralidade, a cultura pós-moderna não é capaz de resolver as exclusões típicas e que são consequência inevitável das sociedades capitalistas.
O consumo desenfreado de imagens, que se desenvolvem pelo avanço rápido e eficaz das tecnologias, se dá num tempo veloz, comprimido num presente eterno. Só existe o aqui-e-agora, mas esse espaço de tempo presente é efêmero e sustentado pelo mito de progresso. Na sociedade das imagens e dos simulacros, deve-se sempre buscar a novidade. Essas imagens tornam mais sólida a coesão social e provocam o consentimento dos indivíduos a este mundo espetacularizado, donde se segue ser difícil imaginar outras formas de existir, de pensar e de sentir, que resistam à penetração maciça das imagens (saturadas) de mercadorias nas mentes e nas emoções dos sujeitos.
Desde já, chamo a atenção para a relação entre a ocupação das imagens, compondo o imaginário dos indivíduos da sociedade de massas e a superficialidade de suas emoções. A influência massificante do mercado contribuiria decisivamente para a formação de indivíduos idiotizados e incapazes, portanto, de atuar criticamente na sociedade, visto que essa influência atua no nível da afetividade e das emoções, conforme ensina Bueno:



“(....) o mundo da mercadoria e das imagens da mercadoria forma um campo de poderosos investimentos imaginários, afetivos e eróticos, uma “força prática” de grande eficácia para persuadir e obter consentimento de baixo, dos pobres e dos trabalhadores pobres, para não mencionar as classes médias urbanas, muito mais diretamente atraídas para esse campo”.
(p. 264)



O mundo da mercadoria é um mundo fetichizado, ou seja, fundamentado no fetiche de mercadoria: um mundo que aparecerá ao trabalhador como estranho e distante, já que este, no processo de produção, tem sua consciência fragmentada, de sorte que ele não se reconhece no produto de seu trabalho. A sedução e o fascínio injetados pelas imagens produzem automatismos de percepção. Atingindo todas as esferas do cotidiano, as imagens aprofundam a crise de valores, de modelos e paradigmas. O que se percebe, nesse contexto, é o abandono de um pensamento reflexivo e crítico, em favor da aceitação do status quo. Embora com certo exagero, alguns teóricos afirmam haver uma tendência a se produzirem indivíduos unidimensionais, bastante esvaziados em termos de força de sua individualidade, numa sociedade cada vez mais administrada e autoritária. No que toca a esta crítica extremista, nos adverte Bueno:



“De fato, supor que uma sociedade urbana de massas possa ser inteiramente unidimensional, administrada e controlada em todos os níveis da vida – trabalho, lazer, prazer, etc. – é aceitar um extremo negativo que não deixa espaço algum para o conflito e para a contradição, produzindo um tipo curioso de pessimismo, em certo momento chamado por Lukács de “inconformismo conformista”.”
(p. 267)




Claro é que, numa perspectiva de análise dialética, há que se levar em conta as contradições constitutivas do real. Concordo, portanto, com a crítica de Bueno. Há nuances e diferenciações no que toca aos efeitos da ocupação das imagens na consciência individual. Deixarei essa questão para outro momento.
Acrescente-se que o mundo das imagens, que atuam nas zonas eróticas das consciências de massas, produzem indivíduos caracterizados pela insaciabilidade. A ordem é consumir mais e mais. Por um lado, há uma necessidade forte de produzir o novo – novos filmes, novas canções, novelas, revistas, livros, espetáculos, etc.; por outro lado, há a necessidade de manter os indivíduos num estado de entorpecimento alienante.
A insaciabilidade consumista parece transferir-se para as esferas das conexões intersubjetivas, particularmente nas conexões entre homens e mulheres. As imagens carregam ideologia e erotismo e são as motivações eróticas e afetivas que fazem com que as pessoas projetem nessas imagens seus modelos de sucesso e de poder. É nessa projeção que buscam compensar a mediocridade e monotonia do seu cotidiano.
Para manter os indivíduos num eterno estado de insaciabilidade, as imagens devem carregar promessas de felicidade, que, por sua vez, produzem uma sensação de conforto. O fio condutor da ideologia é a linguagem, que torna possíveis formas de comunicação distorcidas. Para esta onda de distorções e comunicações enviesadas, contribuem os meios de comunicação de massa, responsáveis também por alimentar a projeção (da consciência) das massas em modelos de sucesso e de poder, representados em jogadores, atores, atrizes, milionários, garotas da playboy, cantor, cantora, etc, donde se segue acentuar-se o que Bueno chama de “carência afetiva e erótica de massa” (p. 270).
A sociedade das imagens vende mitos: do esporte, da política, do cinema, da televisão. Esses mitos povoam o imaginário dos indivíduos massificados e conscientemente regredidos. Trata-se, como se vê, da chamada vida na caverna pós-moderna, cujos habitantes estão incessantemente imersos em simulacros. As conexões são vividas nessa densa atmosfera de imagens de coisa com coisa alguma. E acrescente-se: considerado o conceito de hipermodernidade, proposto por Gilles, devemos reconhecer que, um dos aspectos mais marcantes de nossas sociedades, é o hiperindividualismo. Nesse tocante, nos adverte Gilles:



“O futuro da hipermodernidade depende de sua capacidade de fazer a ética da responsabilidade triunfar sobre os comportamentos irresponsáveis. Estes não vão desaparecer sozinhos, pois se inscrevem necessariamente na lógica da hipermodernidade. De fato, são os próprios mecanismos do individualismo democrático que explicam tanto a responsabilidade de uns quanto a irresponsabilidade de outros, daqueles que preferem corromper a autonomia que herdaram, transformando-a em egoísmo puro”.
(p. 45)



Numa sociedade hiperindividualista, predominam formas de amor egóico, incompatíveis, portanto, com a esperança no amor cujas qualidades basilares referi nas primeiras linhas deste texto. De que modo, então, podemos resistir aos modelos de conexões que contribuem ainda mais para esvaziar nossa individualidade (autenticidade) e nossas emoções e que nos tornam consumidores compulsivos de corpos e líquidos corporais? Essa resposta não poderá ser dada aqui, pois o cansaço cai sobre mim pesadamente. Em todo caso, deixo aqui o que realmente penso: as conexões que se estabelecem no nível epidérmico e que, portanto, são incapazes de propiciar imersões, mantendo-se no nível da superficialidade das aparências, são incapazes de satisfazer o desejo mais íntimo de nossos corações que ainda ousam acreditar num amor transcendente, que supere sua face claramente empobrecida, que se nos apresenta em tais formas de conexão.
Somente o amor desejado pelo espírito é capaz de remover o peso do absurdo de nossa patética existência.

ps. Dos mergulhadores, aguardo comentários e críticas.