quinta-feira, 1 de junho de 2023

"Aquilo que os homens de fato querem não é o conhecimento, mas a certeza". (Bertrand Russel)

 



O sentido do conhecimento

 

            Em seu O que os donos do poder não querem que você saiba (2017)[1], Eduardo Moreira observa que “um autor raramente escreve para fazer amigos [...]. Escreve porque não aguenta mais saber sobre algo sozinho”. (Moreira, ibidem, p. 9). Quando se me deparou esse trecho por ocasião da releitura desse livro, ocorreu-me imediatamente que Moreira não apenas fornecia uma razão para a prática da escrita, mas, sobretudo, deixava entrever o fim último de todo conhecimento: tornar-se publicizado, ou, em outras palavras, tornar-se acessível a todos. Quem se dedica à atividade de pesquisa, de produção de conhecimento, como eu, tem necessidade de propalar o conhecimento adquirido, construído, aprendido. O conhecimento não pode ser um bem privado, mas um bem público, acessível e gratuito. Ele é um bem não rival, como ensina Dowbor[2], isto é, seu estoque não é reduzido pelo seu uso. Quando eu transfiro o conhecimento que tenho a outra pessoa, não deixo de tê-lo, continuo com ele; nada é subtraído dele. Uma vez que, na atual fase do capitalismo, o principal fator de produção é o conhecimento, “o principal fluxo de investimentos não resulta em nenhuma máquina nem chaminés, e sim em capacidade de controle de conhecimento organizado”. (Dowbor, 2020, p. 35). Sem pretender fazer incursão no tema do controle exercido pelas corporações financeiras e seus intermediários sobre o conhecimento, para o qual apenas chamo a atenção, o que me interessa aqui é pensar o conhecimento como produto da atividade social, uma construção para cuja existência contribuem gerações de seres humanos séculos a fio.

          Estou convencido de que o saber ou o conhecimento são instrumentos poderosos de emancipação humano-social; privar uma maioria do acesso a ele significa negar a ela a possibilidade de verdadeira emancipação e autonomia. Sim, aos poderosos, aos donos da sociedade não interessa a democratização do conhecimento; não lhes interessa que mais pessoas sejam capazes de questionar os poderes invisíveis, reticulares que as governam, a legitimação dos privilégios de que aqueles gozam. Mas é extremamente difícil esclarecer o oprimido de sua opressão; é extremamente difícil convencê-lo de que, em sua consciência e em seus atos cotidianos, entranha-se uma estrutura ideológica que, justificando a ordem social estabelecida, o faz agir docilmente para a manutenção e reprodução dessa mesma ordem.

         Há entre os dominados social, politica, cultural e economicamente aqueles que são privados das condições necessárias para que eles tomem consciência de sua condição subalterna; e há uma parcela considerável de dominados que, mesmo dispondo do privilégio educacional, como os membros da classe média real, mesmo detendo o capital cultural, ou seja, mesmo incorporando o conhecimento considerado útil e legítimo pela sociedade[3], contenta-se com a presunção de saber, convence-se de que sabe o que, na verdade, não sabe. Esta parcela parece imune ao aprendizado, ao aprofundamento da reflexão. Falta-lhe, fundamentalmente, a paixão pelo conhecimento; e essa paixão não é ensinável. Não me refiro, naturalmente, à paixão que une os enamorados. Refiro-me ao pathos do conhecimento, uma experiência que envolve o padecer, o sofrer, mas também o conflito, a tensão de espírito, o horror, a angústia, o tédio, a tristeza, o desespero, a solidão, a indignação, a raiva, a alegria, como potência de existir. Como conhecer é uma atividade, fundamentalmente, fisiológica, como é todo o corpo que conhece, no processo do conhecimento, nosso corpo é bombardeado de emoções, de sentimentos, nem sempre afáveis.

        Cabe aqui um esclarecimento. O vocábulo “conhecimento”, não obstante formar-se pela anexação do sufixo nominalizador “-mento”, que dá origem a substantivos abstratos que denotam ‘processo’, ‘atividade’, pode ser usado com um significado que o aproxima dos substantivos concretos. Falamos em "adquirir conhecimentos”, dizemos que alguém dispõe de “um repertório de conhecimentos” e, nesses casos, conceptualizamos o conhecimento como “produtos” armazenados em nossa mente/ memória. Os conhecimentos adquiridos são representados como algo que incorporamos, mesmo que sua natureza continue sendo imaterial. Por outro lado, podemos falar em conhecimento como processo, como atividade. Quando falamos em “práticas de conhecimento”, “exercício de conhecimento”, ou “exercitar o conhecimento”. O conhecimento é o ato de conhecer, é um processo ao longo do qual vão-se formando estruturas representacionais complexas, linguístico-cognitivas, do mundo em nossa mente/cérebro. Em qualquer das duas acepções em que tomemos a palavra conhecimento, sempre que o tomamos como um valor a ser perseguido, a ser cultivado, estamos expostos às suas perturbações, ou melhor, decidimo-nos por nos engajar numa experiência arriscada, interminável, irrefreável, que nos arrasta para uma condição a que Cioran chamou Lucidez demoníaca, de que nós não nos apropriamos, mas da qual padecemos. Na Lucidez demoníaca, dá-se o aniquilamento da superstição, da crença na política e na história como movimento temporal teleologicamente orientado e dotado de sentido. Na Lucidez demoníaca, a trama verbal da realidade se desfaz, e a própria realidade se revela porosa e frágil. Revelada a fragilidade e porosidade da realidade, pode-se descobrir o absurdo, que une, como um laço, segundo Camus, o homem ao mundo.  



[1] MOREIRA, Eduardo. O que os donos do poder não querem que você saiba. São Paulo: Alaúde Editorial, 2017.

[2] DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.

[3] SOUZA, Jessé. A Classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

"Não é a satisfação da vontade que é a causa do prazer (...), mas o fato de que a vontade quer ir avante e quer ainda assenhorear-se do que encontra em seu caminho" (Nietzsche).

 




              O prazer e a dor à luz do perspectivismo nietzschiano

 

“O homem – escreve Nietzsche – não busca o prazer e não se esquiva do desprazer”[1]. O homem quer o mesmo que o mais rudimentar organismo vivo quer: um aumento de potência. Ao ter como fim o aumento de potência, é inevitável que na busca desse aumento de potência concorram o prazer e o desprazer. O desprazer é necessário para toda vontade de potência que deve opor resistência a um obstáculo. O desprazer é, assim, um “ingrediente” normal de todo fenômeno orgânico, de sorte que o homem não foge do desprazer, mas tem necessidade dele. O prazer e a dor, segundo Nietzsche, não são contrários. Não raro, o prazer se faz acompanhar de uma série de desprazeres que leva a um crescimento da vontade de potência. A vontade de potência que “quer” aumentar sua potência deve impor resistência a toda sorte de obstáculo. Assim, no fragmento 304 de Vontade de Potência, observa Nietzsche:

 

Há casos em que uma espécie de prazer é condicionada por uma certa sucessão de pequenas crispações de desprazer: atinge-se, assim, a um crescimento bastante rápido , do sentimento de potência, do sentimento de prazer. (...). Um pequeno obstáculo é suplantado, mas imediatamente segue-se outro que também é suplantado – esse jogo de existências e vitórias estimula ao máximo o sentimento geral de potência, supérfluo e excessivo; constitui precisamente a essência do prazer. (ênfases no original).

 

Para Nietzsche, a essência do sofrimento não consiste numa diminuição da vontade de potência, ou “do sentimento de potência”. A dor pode ser um estimulante para o acúmulo de potência, ao menos para o tipo humano afirmador. O que determina o que provoca prazer e o que provoca desprazer é o grau de potência de uma vontade de potência, de tal sorte que “a mesma coisa, em relação a uma pequena quantidade de potência, manifesta-se como um perigo e a necessidade de evitá-lo logo que possível pode, quando se tem consciência de uma potência maior, trazer consigo uma excitação voluptuosa, uma sensação de prazer”. (ibid., § 306).

O prazer não se dá como resultado da satisfação da vontade; a satisfação da vontade repousa sobre o fato de ela superar-se, de ela querer assenhorear-se “do que encontra em seu caminho”. (ibid.). O prazer reside justamente nesse avanço da vontade de encontro com aquilo que se lhe apresenta como obstáculo ao qual ela impõe resistência; o prazer já se encontra no embate da vontade contra um adversário. Para Nietzsche, o “homem feliz” que se reconforta na ataraxia é o ideal do rebanho. Tomar como critério de avaliação do mundo a quantidade de prazer alcançado é uma atitude própria do tipo humano cansado da vida, para quem “o mundo é algo que razoavelmente não deveria existir porque ocasiona ao sujeito sensível mais desprazer que “prazer””, visão esta a que Nietzsche acrescenta o seguinte comentário – “semelhante palavrório chama-se hoje pessimismo”. (ibid. § 312).

O pessimista, que desaprova a existência em virtude da quantidade de desprazer e/ou de dor que ela abarca, não vê que toma como causa de sua rejeição apreciações de valor. O desprazer e a dor são valores com os quais ele julga nociva a existência. Mas esse julgamento tem como base o sentimento. Nietzsche é incisivo ao rejeitar tal julgamento de superfície: “Eu desprezo este pessimismo da sensibilidade: é um traço de profundo empobrecimento vital”. (ibid.).

Pretender determinar se a vida tem ou não valor segundo a quantidade de prazer e/ou desprazer que ela encerra é ignorar que, na avaliação, o indivíduo se vale de sentimentos como meios pelos quais ele julga a vida. Mas pergunta-se Nietzsche como podemos determinar o valor do valor. O valor do valor não pode ser determinado segundo tais sentimentos agradáveis e/ou desagradáveis. Disso resulta que é somente a quantidade de poder aumentada e organizada que pode determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Em outras palavras, o homem habitualmente decide sobre o valor ou não da existência com base em sua consciência, a qual não é mais do que um instrumento a serviço da vontade de potência . Nietzsche considera como erro o assumir a consciência, mero instrumento da vida em geral, como valor superior da vida, como medida para avaliá-la. Quem toma a consciência como medida para julgar a existência toma a parte (consciência) pelo todo (vontade de potência).

 

A “negação da vida” considerada como finalidade da vida, como finalidade da evolução! A existência como grande tolice! Uma interpretação tão louca é somente o produto monstruoso de uma avaliação da vida por meio de fatores da consciência (prazer, desprazer, bem, mal)

(...) Mas o defeito de uma tal interpretação reside precisamente no fato de que em vez de procurar a finalidade que explica a necessidade de semelhantes meios, pressupomos, de antemão, uma finalidade que os exclui: quer dizer que consideramos como normas nossos desejos em relação a certos meios (meios agradáveis, racionais, virtuosos), estabelecendo, segundo eles, a finalidade em geral que é desejável...  (ibid., § 315, grifo nosso).

 

 

A expressão “negação da vida” que encabeça o excerto supramencionado sinaliza uma crítica às formas que assumem o instinto de decadência (por exemplo, a filosofia pessimista de Schopenhauer, o cristianismo, o budismo...) que tomam como critério de valoração da vida a quantidade de desprazer que ela provoca. Cada uma das formas que assume o instinto de decadência é uma vontade de potência, embora fraca. Cada uma dessas formas do instinto de decadência que toma como finalidade da vida “a negação da vida” constitui uma interpretação da vida, a qual reflete uma vontade de potência enfraquecida, esgotada. Todas essas formas condenam a vida em favor de alguma outra coisa. No pessimismo de Schopenhauer, a vida é condenada em favor da supressão de todo desejo, de todo querer; no cristianismo, em favor do além-mundo, do Reino de Deus; no budismo, em favor do Nirvana.

Sabe-se que o sofrimento para Nietzsche não deve ser razão suficiente para desaprovar a existência; ao contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de homem forte – dionisíaco - um fortificante para a vida, para “mais vida”, não porque se deve amar o sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se deve querê-la, amá-la incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo na dor. A vida do sacerdote ascético, a vontade de potência que ele afirma, por outro lado, é uma vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta contra si mesma, que enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador, mas seus valores são valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da vida. O sofrimento que o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento de punição. Esse homem doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é mais vida, é mais dor; nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de potência, o tipo vital que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele reinterpretou o sofrimento como castigo. Com o sacerdote ascético, a má consciência se chama pecado; nele se dá o agravamento mais nefasto da doença do espírito.

 



[1] Vontade de Potência 2011, § 303.

domingo, 1 de maio de 2022

“O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.” (Darcy Ribeiro)

 









BRASIL, A PÁTRIA DE TODOS AMADA 

 

 

Faz algum tempo, tenho me ocupado em ler livros que versam sobre economia. Incorporando essa prática ao conjunto de meus diversificados interesses intelectuais, meu objetivo é tornar-me um pouco menos ignorante nessa matéria à proporção que vão se me tornando claros não apenas os conceitos econômicos com que trabalham os economistas (superávit primário, deflação, mercado, riqueza, renda, dívida pública, capital de giro, etc.), mas também os mecanismos, as relações, os eventos econômicos subjacentes à vida social e responsáveis pelas mudanças que percebemos e sentimos em nossa vida e na vida da classe social a que pertencemos. Por exemplo, quase todo brasileiro, desde cedo, aprende que, no Brasil, quem paga os maiores impostos são os pobres. Isso é verdade. Mas a maioria da população brasileira não sabe por que isso acontece e como acontece. À medida que vou desbravando as terras da ciência econômica, um mundo novo se ilumina, se esclarece aos poucos para mim, mas, ao mesmo tempo, também vou tomando consciência do quanto desse mundo permanece sob o véu da ignorância, permanece na obscuridade para o homem comum no dia a dia. Fico atônito em face da quantidade de conhecimentos econômicos que permanecem ocultados, que, se fossem acessíveis à grande maioria da população, talvez ela tivesse mais poder nas decisões políticas, talvez não aceitasse tão docilmente as condições de injustiça em que vive; talvez não consentisse com o sistema de dominação social e econômico que a mantém privada do acesso a maiores porções da riqueza produzida em sua sociedade. Ao compartilhar um pouco do que sei, tenho em vista aqui, especialmente, a parcela da população que apóia o atual governo de Jair Bolsonaro; penso em todos aqueles que se aglomeram em seus “cercadinhos”, a maioria dos quais homens e mulheres da classe média que se formou historicamente, no Brasil, distinguindo-se das camadas populares pelo tipo de socialização de seus membros, os quais se beneficiam do privilégio da educação, de uma escolarização maior do que aquela que possui (ou não possui) os membros das classes inferiores, embora uma grande parte do eleitorado de Bolsonaro inclua também indivíduos muito mais velhos sem grau de escolarização superior. Seja como for, o que dou a saber não é parte do conhecimento de mundo de uma maioria esmagadora de nossa população. Antes, portanto, de defender um líder político que, para mim, é indefensável, por inúmeras razões que não vêm a propósito enunciar agora, acho importante atentar para o que se segue.

Acho, politicamente, que, considerando a realidade social e econômica de um país como o Brasil, marcada por grandes desigualdades em termos de distribuição de renda e riqueza, o melhor a fazer é eleger candidatos a cargos públicos dispostos a organizar um Estado forte que não ceda ao engodo dos proprietários dos meios de produção e de terra (talvez, o melhor a ser feito fosse deflagrar uma revolução social para derribar os poderes neoliberais e recriar todo um aparelho de Estado que, há décadas, é subserviente à lógica do capital financeiro, mas isso é uma utopia num país de sucessivos atrasos sociais e econômicos como o nosso). Mas o que ganhamos com um Estado mais forte e eficiente? Vejamos.

Disse, inicialmente, que, no Brasil, quem paga os impostos mais altos é a classe trabalhadora. En passant, devemos saber que “impostos” são o mecanismos mais eficazes, nas sociedades modernas, para a promoção da redistribuição de riqueza e igualdade social e econômica. Acontece que, desde a época dos Grandes Descobrimentos que marcaram a modernidade, sempre que novas tecnologias acenam para oportunidades de geração maior de riqueza, os membros dominantes da comunidade, ou seja, os donos dos meios de produção, os capitalistas, convencem o poder público (Estado) da importância de fazer investimentos. Mas tais investimentos que carreiam a promessa de gerar mais riqueza para TODOS os membros da comunidade envolvem risco. Como o poder público é o sujeito interessado em alocar e distribuir a riqueza produzida para a comunidade como um todo, cabe a ele investir. Assim, pressionado pelos donos do capital, o poder público aceita fazer o investimento, mas há um problema: faltam os recursos necessários. O poder público não dispõe da riqueza suficiente para tal aventura em nome do “progresso” que beneficiará a “todos”. A solução, então, é a contribuição conjunta dos donos dos meios de produção, que investiriam parte de sua riqueza. Mas é, nesse momento, que as relações de poder mudam em favor dos mais poderosos economicamente. Os donos dos meios de produção, em vez de investirem parte de sua riqueza, correndo o risco de perdê-la, EMPRESTA suas riquezas ao poder público! (começa aí o tal “endividamento público”, ou a tal “dívida pública”). Mas, nesse mecanismo de endividamento do poder público, há que acrescentar um ingrediente. Os recursos obtidos pelo Estado por concessão dos donos dos meios de produção, em vez de serem utilizados para o tal “progresso”, que deveria beneficiar a todos, são empregados em iniciativas que beneficiam majoritariamente os mais ricos. Por exemplo, são utilizados para fornecimento de energia elétrica ou para a pavimentação de ruas em regiões onde residem os ricos ou onde se acham suas fábricas. Assim, deixa-se de gastar com a melhoria de vida de quem mora nas periferias, de quem é mais pobre. Os donos dos meios de produção encontraram um meio de fazer com que o Estado faça por eles e ainda lhes pague por esta obra (através dos juros da dívida). Vejam bem! Mais do que conseguir fazer a obra de que necessitam sem gastar um centavo, os capitalistas ganham dinheiro depois que ela é feita.

O endividamento do poder público significa também que uma parte da riqueza gerada pela comunidade (quem gera a riqueza são as classes trabalhadoras!) e arrecadada em benefício de “todos” acaba por fluir para as mãos de uma minoria já economicamente privilegiada, através do pagamento da dívida contraída. - Deu para entender? Quer que eu desenhe? - Tendo contraído a dívida com os donos dos meios de produção e das terras (“os tais parceiros da iniciativa privada”), o poder público só pode saldá-la de duas formas. A primeira forma é aumentando os impostos, ou seja, aumentando a porcentagem com que cada membro da sociedade deve contribuir sobre as riquezas que gera ou sobre as que tem em estoque. A segunda forma é pagando com riquezas que já foram acumuladas no passado pelo trabalho de toda a comunidade e que deveria ser utilizada para a melhoria das condições de vida da comunidade. Mas agora esse compromisso é desfeito, já que o poder público tem de atender a um compromisso assumido “ingenuamente” que se apresentava como um grande benefício para todos. Endividado, o poder público, porque tem de pagar juros sobre juros, possui uma quantidade de riqueza menor do que antes, que é insuficiente para saldar suas próprias dívidas, tais como pagar seus funcionários públicos, fornecer serviços de saúde, moradia e educação à população, etc. A capacidade de investimento do poder público foi enfraquecida. Mas toda a comunidade continua carecendo de investimentos; afinal, a riqueza existente está sendo consumida e isso pode trazer sérios prejuízos sobretudo àqueles que não detêm nem terras nem os meios de produção (eu e você, caro leitor trabalhador!). De agora em diante, tanto o governo quanto a comunidade passam a ficar dependentes dos donos das terras e dos meios de produção (que formam o que Ciro Gomes chama de “o grande baronato brasileiro”). Os donos dos meios de produção se tornaram agora o único agente econômico capaz de contribuir com o investimento necessário para gerar riqueza que satisfará as necessidades da comunidade. Percebam que genial é este processo, que TODOS NÓS, trabalhadores, ignoramos ou aceitamos passivamente: esse processo situa quem criou o problema (os donos dos meios de produção e de terras) no lugar de único agente capaz de solucioná-lo. Os donos dos meios de produção são, doravante, os “salvadores” em potencial de toda a comunidade, angariando o prestígio e a estima de todos os membros da comunidade (que, no Brasil, culpam os mais pobres por todos os graves problemas do país!).

Como os donos dos meios de produção se tornaram “os salvadores da pátria”, duas consequências imediatas se impõem. A primeira delas é o aumento do poder de barganha que adquirem os ricos com os atores políticos, ou seja, com os agentes do poder público, justamente com aqueles que ocupam posições de decidir e criar as regras de distribuição de riqueza na comunidade. O poder público se tornou subserviente ao poder econômico dos grandes proprietários do capital (os donos dos meios de produção e de terras). A segunda consequência é a possibilidade de eles se apresentarem como os melhores candidatos para representar os interesses da comunidade em processos eleitorais, já que são os únicos dotados dos meios para salvar a sociedade. Essas duas consequências combinadas produzem as condições perfeitas para que, numa democracia representativa que deveria atender aos interesses de todos, um grupo que só representará os interesses das classes mais ricas seja eleito e passe a ter o poder de definir as regras de distribuição de riquezas, privilegiando os que já a possuem em grande quantidade, sem que a sociedade o conteste. Eis um exemplo dentre as formas pelas quais o capitalismo é nocivo à democracia. O que se configura em países como o Brasil, onde o poder público é subserviente ao poder econômico e político dos proprietários do capital, ou seja, da maior parte da riqueza gerada, é uma falsa ou aparente democracia, hoje, certamente, em frangalhos num país onde vige um governo autoritário e antidemocrático como o de Bolsonaro. Em geral, só nos preocupamos com a defesa da democracia, como acontece no atual momento histórico no Brasil, quando a estabilidade do tripé dos Poderes que constituem o Estado Democrático de Direito é ameaçada, mas a ameaça à democracia no Brasil se dá todos os dias sempre que admitimos as indecentes desigualdades sociais e econômicas, sempre que aceitamos a subserviência do Estado aos interesses dos proprietários dos meios de produção, sempre que nos convencemos de que tirar direitos trabalhistas acarreta melhoria no mercado de trabalho, sempre que culpamos os mais pobres pelos problemas que assolam nosso país, sempre que acreditamos que o único problema a ser combatido no Brasil é a corrupção dos governantes, especificamente a corrupção de um único partido político, etc.

Uma vez que ocupem o poder público, os representantes dos interesses dos donos dos meios de produção e de terras, passam, com frequência, a legislar em causa própria. A primeira medida que adotam é o aumento de impostos, mas não de forma homogênea, é claro. Os impostos que recaem sobre a propriedade de terras e dos meios de produção são menores, já que o objetivo é facilitar o processo de investimento para a geração de novas riquezas. Por outro lado, todos os demais impostos, como os de bens e serviços, que afetam a população, sofrem aumento significativo. O Brasil é um exemplo paradigmático desse processo. A carga tributária no governo Bolsonaro foi a maior dos últimos 12 anos. No Brasil, o imposto sobre terra é irrisório. Os impostos sobre a renda e o patrimônio estão entre os menores do mundo. Em compensação, são altíssimos os impostos que incidem sobre os bens e serviços, e esse aumento impacta negativamente a vida dos mais pobres. A maior arrecadação do país recobre o conjunto desses últimos impostos.

A segunda medida adotada pelos representantes políticos dos grupos mais economicamente poderosos é exigir que o Estado abra mão de suas propriedades e transfira-as aos donos de terras e dos meios de produção, para, assim, quitar suas dívidas, recuperando sua capacidade de investimento necessário para cumprir a sua função de promotor da distribuição de riquezas, através de impostos, em benefício de toda a comunidade. O Estado paga suas dívidas, transferindo aos mais ricos o estoque da riqueza que a sociedade possui: terras, empresas e imóveis. Vejam bem! A RIQUEZA GUARDADA EM NOME DA COMUNIDADE E GERADA COM A CONTRIBUIÇÃO DE TODOS é transferida para as mãos da iniciativa privada. Assim, os mais ricos continuam no controle majoritário do principal instrumento gerador de desigualdade social e econômica numa sociedade: as terras e os meios de produção (empresas e imóveis). Esse processo é conhecido pelo nome de “privatização dos ativos do Estado” ou simplesmente “privatização”. Significa simplesmente vender, em nome do poder público, as riquezas construídas com os recursos de todos, sob o pretexto de devolver ao Estado o poder de investimento necessário para gerar riquezas e atender as necessidades das camadas mais pobres da sociedade. Todo o processo desde o início faz ruir as riquezas da sociedade, as quais passam a ser propriedades dos grupos mais ricos e poderosos. Todo o processo de decisão política da comunidade fica submetido ao poder dos agentes que são donos dos meios de produção (JOVENS, não se iludam com a campanha eleitoral, que os convoca para mudar o futuro do Brasil no simples ato de votar!).

Finalmente, enquanto não se destruir essa estrutura político-econômica de poder dominante, nada mudará no Brasil. Continuaremos a ir coercitivamente à urnas para trocar, de tempo em tempo, as fraldas cagadas do bebê.

Sou pessimista quanto aos futuros do Brasil, sempre adiados. Admiro a resistência de quem acredita que, apostando simplesmente em novos políticos, conseguiremos melhorar a nossa vida individual e a de toda a nossa sociedade. Acho que o capitalismo neoliberal no Brasil será sempre uma opção desastrosa (na verdade, ele o é em grande parte do mundo). Em vez de ficar adorando líderes políticos populistas de espectro progressista ou conservador, deveríamos todos fazer a lição de casa: lutar por uma melhor educação, que emancipe as classes subalternas da opressão social, política e econômica que sofrem. Aos que pertencem à classe média, sugiro que reconheçam que seus interesses são comuns aos dos mais pobres, porque vocês também são trabalhadores assalariados e explorados pela máquina do capital.










O CINISMO DA POLÍTICA BRASILEIRA

 

O cinismo do líder do partido do deputado Daniel Silveira ao justificar a participação deste na CCJ escancara a naturalização da relação simbiótica entre política e corrupção no Brasil, relação esta garantida por um aparelho de regulamentos, normas, regras a cuja letra e poder simbólico os políticos recorrem sempre que lhes é conveniente fazê-lo, porque, afinal, esse aparelho jurídico-administrativo foi feito com uma única finalidade, na prática: proteger juridicamente e politicamente os atores políticos, garantindo a eles as benesses do exercício do poder.

Eis a fala do deputado, líder do partido de que faz parte Daniel Silveira:

“Honestamente, não vi o motivo de tanto alarde ou tanta balbúrdia acerca disso. Se formos analisar a vida de cada deputado e as comissões que cada um compõe, nós encontraríamos muita coisa que não deveria acontecer. Então, ele, repito, está no exercício de seu mandato, livre para exercer o seu mandato de forma plena”.

Deputado Paulo Bengston, líder do PTB - Partido Trabalhista Brasileiro, fundado por Getúlio Vargas com o fito de “servir de anteparo entre os sindicatos e os comunistas".

(Vejam bem! “anteparo entre os sindicatos e COMUNISTAS!”) Hoje, a julgar pela eleição de um Daniel Silveira, a última coisa que o PTB parece representar são os interesses da classe trabalhadora e dos sindicatos!

(Estou rindo 😅😅😅😅😅😅 de nervoso)

 

 

A paixão pela linguagem sussurra-me insistentemente para que eu me ocupe em analisar, servindo-me das ferramentas conceituais dos estudos textuais e do discurso, a fala do deputado. Uma análise que faça ver como o discurso de deputado produz sentido, que exponha os mecanismos sintático-semânticos e as estratégias discursivas, pelos quais um sentido é enunciável, é legível e se pretende seja legítimo, aceito, seria bem oportuna, para mostrar aos não especialistas como o discurso político funciona de modo a legitimar relações de poder, de modo a reproduzir estruturas de dominação social, de modo a servir aos interesses dos sujeitos políticos sempre ávidos de permanecer no poder. Reluto em fazer esta análise agora, pois falta-me o tempo necessário para tanto. Talvez, eu a exponha na forma de um texto mais teoricamente elaborado neste blog. Deixo aqui apenas um convite ao leitor: atente para o uso do adverbial modalizador “honestamente”, que se topa no início da fala do ministro.

Há algo muito interessante no uso de adverbiais moralizadores da classe de “honestamente”. A forma “honestamente” é um modalizador afetivo interpessoal, ou seja, através de seu uso o enunciador projeta um sentimento, no caso de “honestidade”, “sinceridade”, sobre o conteúdo comunicado, qualificado-o como um conteúdo que merece credibilidade por parte do interlocutor, porque quem o produz o faz com honestidade, com o compromisso de que, ao dizê-lo, não mente, está sendo sincero. Pelo uso de “honestamente” qualifica-se o modo como o que se diz é dito (digo x como alguém que está sendo honesto ao dizê-lo), mas também busca-se suscitar no interlocutor a confiança de que o que é dito corresponde exatamente àquilo em que o enunciador acredita. O locutor, ao usar “honestamente”, busca construir uma imagem de si positiva, a imagem de quem é digno de confiança, que emite opiniões transparentes, que diz o que pensa e não falta com a verdade.

Sim, há muita coisa envolvida só no uso de uma única palavra como “honestamente”. Os sentidos produzidos não são autoevidentes, não se encontram esgotados na superfície dos textos como boias flutuando no mar. As escolhas linguísticas que fazemos atendem a determinados propósitos comunicativos. São esses propósitos comunicativos que determinam a escolha entre um lexema e outro, entre um modo de estruturação sintática e outro... E o propósito comunicativo principal do deputado é defender a participação de Daniel Silveira na CCJ. Ao escolher o uso de “honestamente”, o deputado que apoia Daniel Silveira, diz o seguinte basicamente: “o que digo é exatamente o que penso, o que digo é digno de confiança, o que digo reflete o homem honesto que sou, o que digo corresponde ao meu dever de não faltar com a verdade, de não escamotear o que sinto, o que penso, pois falando honestamente sou uma pessoa confiável”.












10 Lições básicas de economia

 

 

1. É impossível falar em igualdade de condições num país como o nosso;

2. As empresas privadas têm um único interesse: o lucro;

3. O capitalismo é e sempre será um sistema econômico no qual pobres trabalham para melhorar a vida dos mais ricos;

4. O custo dos planos de saúde oferecidos pelas empresas a seus empregados é convertido no preço do produto final como se fosse um imposto. As empresas não assumem o custo dos planos de saúde; o que elas fazem é incorporá-lo aos demais custos de seus produtos. Consequentemente, o produto que chega ao consumidor é mais caro.

5. São os pobres que financiam os planos de saúde dos ricos;

6. Os bancos e a elite capitalista são capitalistas no sucesso e na prosperidade; mas socialistas no insucesso e na escassez. Quando quebram, os bancos se socorrem do Estado;

7. A maioria dos países capitalistas do mundo não têm interesse em sobretaxar os mais ricos;

8. O Brasil é o país com a maior desigualdade social do mundo. O 1% mais rico concentra a maior parte da renda total gerada no país. Quando tomamos o patrimônio, constatamos o aumento desse percentual já indecente. 1% dos donos das terras concentra mais de 50% das terras cultiváveis do país. Quando consideramos o volume de dinheiro, o 1% mais rico possui mais reservas acumuladas do que os 90% mais pobres;

9. Os bancos brasileiros cobram mais de seus clientes em taxas bancárias do que tudo o que o país investe em educação e saúde;

10. Os pobres geram riqueza, e os ricos a concentram. Os mais pobres precisam trabalhar para sobreviver. Uma grande parte do que os pobres geram como riqueza para a comunidade, através do seu trabalho, é retida como um acréscimo nas mãos dos mais afortunados. Marx é quem nos ensinou que a relação de trabalho no capitalismo está baseada na extração da mais-valia, ou seja, no sobrevalor produzido pelo qual o trabalhador não é pago. Sim, a quantidade de horas trabalhadas é superior ao valor do salário que é pago ao trabalhador!

 

 

domingo, 10 de abril de 2022

"Em vez de chamar uma percepção falsa de 'alucinação', deveríamos chamar a percepção externa de 'uma alucinação confirmada' ". (Hyppolyte Taine)




A realidade não é como parece ser

 

O  que exprimo aqui é uma intuição, uma intuição que os místicos hindus nos ensinam, intuição de que Schopenhauer também comunga, uma intuição que parece encontrar respaldo na física quântica. “A vida é como um sonho”. O que vemos, sentimos, experienciamos são apenas imagens deste sonho enigmático. Atores entram e saem de cena incessantemente. Aparecem e desaparecem para sempre como espíritos que se dissolvem no ar. Nada é substancial. Acidentes fatais, guerras, epidemias, catástrofes naturais, o tráfego dos pedestres, o barulho e a azáfama dos grandes centros urbanos, mares, tempestades, dia e noite, tudo isso é feito da matéria onírica. Nada deixará para trás um sinal, um vestígio. Nossas vidas frágeis e breves são feitas da matéria de que se fabricam os sonhos; elas têm o acabamento do sono. Eu não estou louco; ao contrário, encontro-me na mais profunda e cristalina Lucidez de quem chegou a compreender o Essencial. Todos vivemos sob a ilusão do véu de Maya. Acreditamos tocar uma realidade concreta com as mãos, mas, ao fazê-lo, ela se desmancha entre nossos dedos como castelos de areia; acreditamos existir independentemente de nós uma realidade exterior, maciça, cheia de luz e cores que captamos com nossos olhos. Erramos! É o nosso cérebro que constrói a realidade que experimentamos. O que vemos, sentimos, percebemos são modelos, imagens ou mapas mentais fabricados por nosso cérebro. É como o membro fantasma que mesmo amputado ainda é sentido. Algo estranho (fora do comum) acontece nessa experiência de quem tem uma perna amputada: a realidade e a sensação podem divergir, mas coexistir no cérebro. Os sinais não viajam de nossos olhos para o cérebro; é justamente o contrário que acontece: eles viajam do cérebro para os olhos. É o cérebro que constrói uma imagem do que prevê que os olhos devem ver. O realismo dependente do modelo, em física, não é uma forma de idealismo, porque não nega que existe um mundo exterior à nossa consciência. Mas o realismo dependente do modelo não se identifica com o realismo em sua versão tradicional, porque a realidade exterior existe na dependência de um modelo mental produzido pelo cérebro de um observador. A realidade não existe de modo autônomo, segundo a perspectiva do realismo dependente do modelo. Diz-nos o astrofísico Carlo Rovelli, “o que vemos não é uma reprodução do exterior. É o que esperamos ver, corrigido pelo que conseguimos captar”.  

Não quero convencer ninguém da razoabilidade destas epistemologia e metafísica. Assumo-as como fundamento de uma ética de compaixão e solidariedade para com todos os viventes, cuja existência está atolada na ilusão de Maya. Elas me ajudam a suportar o absurdo de uma existência cujas condições não foram escolhidas por mim, elas me ajudam a suportar o peso da perspectiva de minha morte inevitável, que avança insondável à medida que envelheço; elas me ajudam a aceitar a vanidade que corrói, até as raízes, todos os meus esforços, tudo aquilo que se me afigura como sumamente importante. Ter sempre em conta o caráter insubstancial da vida, de tudo aquilo que experienciamos constitui o princípio de uma ética do desapego, do desprendimento.

Assim diz um excerto de “A tempestade”, de Shakespeare:

 

“...as torres, cujos topos se deixam cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes e o próprio globo, grandioso, e também todos que nele aqui estão e todos os que o receberam por herança se esvanecerão, e assim como se foi terminando e desaparecendo essa apresentação insubstancial, nada deixará para trás um sinal, um vestígio”.

 

 

Disse que, à luz dessa intuição, corroborada pela física quântica, suporto o “ab-surdo”, isto é, o que é desagradável aos ouvidos, o que é incompreensível, porque é “alogos”, irracional, dissonante. Eis o absurdo: a absoluta gratuidade e contingência da existência. Camus chama absurdo ao divórcio entre o desejo humano de logicizar, de explicar racionalmente o mundo, de lhe conferir sentido e a realidade cruel, ilógica dos acontecimentos, ou ainda, absurdo é, para Camus, o divórcio entre a opacidade indiferente do universo e o desejo humano de sentido, clareza e felicidade.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Nada vem do nada

 




Mobilismo e Imobilismo

Heráclito e Parmênides em confronto

 

 

 

RESUMO

 

Dividida em cinco partes, esta exposição se destina à apresentação e à comparação dos pensamentos dos filósofos, chamados na tradição historiográfica, de pré-socráticos, a saber, Heráclito de Éfeso (540-480 a.C) e Parmênides de Eléia (504-450 a.C)[1]. Na primeira parte, que é introdutória, damos a conhecer a primeira fase da filosofia grega e apresentamos, em linhas gerais, as características do pensamento pré-socrático. Também destacamos e definimos quatro conceitos que estão à base do desenvolvimento desse pensamento. Na segunda parte, damos a saber o pensamento de Heráclito, conferindo especial destaque ao papel desempenhado pelo conceito de fogo na compreensão que esse filósofo tinha do real. Na terceira parte, apresentamos o pensamento de Parmênides, destacando o seu conceito de Ser. Na quarta parte, cotejamos o pensamento de Heráclito ao de Parmênides, a fim de assinalar, basicamente, as características que os distanciam, sem descurar de notar em que medida eles se aproximam. A quinta parte recobre as conclusões deste estudo.

 

 

 

1. O período Cosmológico

 

A primeira fase da filosofia grega ficou conhecida, na tradição historiográfica, como período cosmológico. É lugar-comum dizer que a filosofia é, em sua aurora, uma cosmologia. Em outras palavras, a filosofia nasce como cosmologia. Essa fase se caracteriza pelo nascimento do pensamento científico ocidental. É o período em que germinam as primeiras sementes do pensamento ocidental, período – vale frisar – em que grandes gênios filosóficos produziram os primeiros conceitos filosóficos praticamente sem contar com qualquer influência prévia. Trata-se do período em que viveram os chamados filósofos pré-socráticos, expressão que, embora consagrada pela historiografia oficial, não é fiel aos fatos. Um dos problemas ligados a essa expressão é que ela faz crer que aqueles pensadores viveram antes de Sócrates; no entanto, alguns deles foram contemporâneos de Sócrates, entre os quais estavam Demócrito e Anaxágoras. Zenão conheceu Sócrates; e Empédocles era mais jovem que o sofista Protágoras (contemporâneo de Sócrates). Convém, portanto, ficar claro que os filósofos pré-socráticos são assim chamados em virtude da natureza dos temas de que se ocuparam, e não porque tenham vivido antes de Sócrates.

Como tenham sido os primeiros cosmólogos, os filósofos pré-socráticos preocuparam-se em estudar a natureza  ou  phýsis, entendida como estrutura fundamental do cosmo. Por se tratar de um conceito fundamental nas investigações dos filósofos pré-socráticos, destinaremos uma seção para definir, com mais clareza, o que é phýsis; a este conceito reuniremos também o de arkhécosmo e lógosPhýsis, arkhé,  cosmo e lógos são conceitos  cuja compreensão depende do esclarecimento sobre a problemática de que se ocuparam os pré-socráticos. Por se interessarem em investigar as leis do universo (cosmo) e sua estrutura, esses filósofos eram chamados, acertadamente, de cientistas naturais.

Conquanto estivessem preocupados com questões tais como a origem do universo e sua estrutura fundamental, não foram os pioneiros nessa seara. A genialidade dos pré-socráticos repousava sobre a maneira como abordavam essas questões. É justamente na maneira como eles as abordavam e respondiam a elas que residia a singularidade do pensamento desses filósofos.

 

 

1.2. Características do pensamento pré-socrático

 

Os filósofos pré-socráticos eram homens dotados de grande saber teórico e prático, aos quais foram atribuídos feitos notáveis, como prever eclipses, medir a distância dos navios no mar (Tales de Mileto), traçar mapas da Terra, construir relógios de sol (Anaximandro). Esses filósofos trouxeram uma novidade, em face das explicações míticas e das crenças populares a respeito do mundo: o uso da especulação racional na tentativa de compreender a realidade que se manifesta aos homens.

Os filósofos pré-socráticos empreenderam uma busca pelos primeiros princípios. Princípio é o começo, mas também a causa de tudo. Aristóteles, por exemplo, de cuja pena nos chegou o saber sistemático sobre a filosofia pré-socrática, distinguia a ciência, para ele definida como conhecimento pelas causas, da metafísica, cujo escopo são as primeiras causas ou princípios. O princípio é, portanto, o fundamento, quer no campo da física, da ética, quer no da lógica, quer ainda em qualquer outro campo. Princípio ou fundamento é aquilo de que todas as outras coisas derivam, de tal modo que ele mesmo não é derivado nem deduzido de nada.

Com vistas a conferir um caráter didático ao desenvolvimento desta seção, apresentaremos as três características básicas do pensamento pré-socrático, destacando-as em parágrafos distintos, não sem antes notar que se há um problema que obsediou os gregos em geral, e os pensadores pré-socráticos em particular, esse problema foi o da transitoriedade ou geração e corrupção de todas as coisas.

A primeira característica diz respeito à maneira científica ou racional com que os filósofos pré-socráticos investigavam o mundo e com que elaboravam as explicações sobre as ocorrências dele. Assim, o mundo era visto como uma totalidade ordenada e inteligível, cuja história apresenta um desenvolvimento que pode ser explicado. Trata-se de um mundo cujas partes se organizavam num sistema compreensível. Não era mais um conjunto aleatório de partes nem uma série arbitrária de eventos. Enquanto totalidade ordenada, podia ser explicado por meio de um sistema estruturado por princípios gerais aplicáveis aos fenômenos. O cosmo ou universo era explicado com base em suas características internas. Assim, um tipo de evento era explicado tendo em conta a relação que mantinha com outro tipo de evento. Não havia, portanto, apelo a causas exteriores, transcendentes (por exemplo, as ações dos deuses), de sorte que os pré-socráticos se distanciaram do pensamento mítico. Essas causas eram imanentes ao mundo.

A segunda característica notável está na forma sistemática com que se apresentavam as explicações. Elas procuravam dar conta da totalidade dos eventos naturais por meio dos mesmos termos e métodos. Os filósofos pré-socráticos elaboravam princípios gerais e comuns, visando a explicar os mais diversos fenômenos físicos.

A terceira característica diz respeito ao fato de as explicações serem econômicas, o que significa dizer que se compunham de poucos termos, exigiam poucas operações e davam margem a poucas lacunas. Destarte, a multiplicidade dos fenômenos se reduzia a uma ordem simples e inteligível, de modo que a maior quantidade de eventos possível poderia ser explicada com o mínimo de termos e operações. Por exemplo, o filósofo Anaxímenes procurou explicar a existência de tudo, postulando o ar como princípio originário.

 

Sumariando o que se expôs até aqui, a filosofia pré-socrática surgiu como cosmologia ou física. O mundo era seu objeto de investigação.

 

1.3. Quatro conceitos importantes no pensamento pré-socrático

 

As escolas pré-socráticas eram, assim, designadas com o objetivo de sublinhar sua preocupação principal, cujo objeto era a phýsis. Considerem-se, em alíneas, os conceitos de arkhé, cosmos, lógos phýsis.

 

a) arkhé

 

Os primeiros filósofos buscavam a arkhé, ou seja, o princípio absoluto (primeiro e último) de tudo que existe. A arkhé precede a tudo, está no começo de tudo e no fim de tudo. É o fundo imortal e imutável, incorruptível de todas as coisas. É o que as faz surgir e as governa. É a origem, mas uma origem que é perene e permanente. Com a arkhé, os primeiros filósofos evitaram uma regressão ao infinito da série explicativa causal.

 

b) cosmo

 

Para os pré-socráticos, o cosmo é o mundo natural dotado de ordem, harmonia e beleza. O cosmo recobre também o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de acordo com princípios racionais. A ideia básica pressuposta aqui é que o cosmo é uma ordem racional, uma ordem hierárquica, na qual certos elementos são mais básicos. O cosmo se estrutura de forma determinada e tem a causalidade como lei principal.

O cosmo é uma ordem universal considerada boa e justa pelos pré-socráticos. Eles também a consideravam uma ordem normativa.

 

c) lógos

 

Lógos é um conceito polissêmico; mas é correto defini-lo como discurso. O lógos é uma explicação, na qual são apresentadas razões. É nesse sentido que o discurso dos primeiros filósofos, que se debruçavam sobre o real, procurando explicar suas causas naturais, é um lógos. Essas razões são produto do pensamento humano que visa ao entendimento da natureza. O lógos é, portanto, discurso racional, argumentado, ao longo do qual as explicações são justificadas e estão sujeitas à crítica e à discussão.

A esta altura, impõe-se-nos dar a conhecer um pressuposto básico da filosofia pré-socrática: a correspondência entre a razão humana e a racionalidade do real. É essa correspondência, assumida como pressuposta, que torna possível um discurso racional sobre o real.

 

d) phýsis

 

Phýsis é uma palavra que compreende diversos significados. Três dos quais se destacam: a) ação de nascer, formação, produção; b) a natureza íntima e própria de um ser, a maneira de ser de uma coisa; c) a natureza como força criadora e produtora dos seres. A phýsis é o objeto de investigação dos primeiros filósofos. Ela pode ser concebida como o mundo natural, ainda que a forma “natureza”, com que se traduz, comumente, a noção de phýsis, seja rejeitada por alguns comentadores, dada a sua inexatidão. De resto, a phýsis designa um substrato inesgotável e perene donde provém o cosmos. Tudo é phýsis, tudo provém da phýsis e a ela retorna. Ela é a primeira e última realidade de todas as coisas.

Traduzida para o latim como natura, a phýsis é a fonte originária de todas as coisas, a força que dá origem, que faz nascer, brotar, desenvolver-se, renovar-se todas as coisas. É a realidade primeira e última subjacente aos fenômenos que se dão à nossa experiência. Em suma, phýsis compreende a totalidade de tudo que é: o céu, a terra, os astros, a aurora, o crepúsculo, as estações do ano, as pedras, os animais, os homens, a moral, a política, as ações e os próprios deusesAssim, nada vem do nada; tanto a arkhé quanto a phýsis são eternas.

 

 

2. Heráclito: o filósofo do devir[2]

 

De início, cumpre notar que Heráclito vivera em Éfeso. Procedia de uma família aristocrática; era reconhecidamente um misantropo e não mantinha relações amistosas com os seus concidadãos. Devido ao seu estilo de expressão, Heráclito fora chamado O Obscuro. Na Antiguidade, Heráclito notabilizou-se pela obscuridade que permeava seu discurso (Kirk et.al. 2010, p. 191).

O livro cuja autoria lhe fora atribuída chamava-se Sobre a natureza, em virtude de seu tema principal dividir-se em três discursos: Da política, Do universo e Da Teologia. Heráclito o redigiu intencionalmente de forma obscura, a fim de que só as pessoas que gozavam de prestígio e influência na sociedade de então pudessem conhecê-lo, sem que fosse depreciado pelo populacho.

A influência do pensamento heraclitiano atravessou os séculos e foi, particularmente marcante, na filosofia dos estóicos, os quais tomaram Heráclito para autoridade no tocante às questões de ordem física. Coube aos estóicos desenvolver a ideia heraclitiana de viver conforme a Natureza. Por outro lado, os estóicos, não se cingindo a reproduzir o pensamento de Heráclito, foram responsáveis por reelaborar alguns de suas teses, com vistas a satisfazerem exigências de suas próprias posições. Destarte, deve-se notar que os estóicos atribuíram a Heráclito a ideia de que o mundo passava por uma destruição periódica pelo fogo. Do desenvolvimento do conceito de fogo, em Heráclito, ocupar-nos-emos mais adiante. No momento, cumpre observar que, para Heráclito, o mundo todo, a realidade sensível, é caracterizado, fundamentalmente, pela impermanência de todas as coisas. Tudo flui, tudo se move, muda, se transforma – eis o corolário de todo o seu pensamento. O mundo todo é visto como um fluxo incessante, onde só permanece estável e inalterável o lógos, que rege a inevitável transformação de todas as coisas.

Com Kirk et.al. (p. 192), observe-se que todos os filósofos pré-socráticos estiveram vivazmente intereessados no predomínio da mudança no mundo da nossa experiência. Heráclito não era diferente dos demais, nesse tocante, muito embora pareça ter primado pela clareza com que asseverou a universalidade da mudança. Heráclito também se destacou, em face de seus predecessores, por conferir um valor sobremaneira importante à ideia de medida inerente à mudança, à estabilidade que persiste por meio daquela e que a governa. Cuidamos importante sublinhar este momento do desenvolvimento do pensamento heraclitiano: Heráclito não nega a unidade do real. A diversidade revelada no real, no ser não exclui a unidade, pois que, para Heráclito, o diverso é o mesmo, ou, atenuando o paradoxo, o diverso pressupõe a unidade. Heráclito não deixa de admitir a unidade como uma dimensão do ser; todavia, pensa a estrutura do ser como atravessada pelo movimento, pela mutabilidade de todas as coisas, pela luta dos contrários.

Tendo em conta o fato de o pensamento heraclitiano ter sido, em alguma medida, alterado pelas mãos de Platão e Aristóteles, cumpre notar o que se segue:

 

(...) é mais seguro tentar a reconstituição do pensamento de Heráclito, em primeiro lugar, com base nos fragmentos autênticos que chegaram até nós. Mesmo assim, não podemos esperar mais do que uma compreensão muito limitada, em parte porque Heráclito, conforme observou Aristóteles, não usou as categorias da lógica formal, e teve tendência para descrever a mesma coisa (ou aproximadamente a mesma coisa) ora como um deus, ora como uma forma de matéria, ora como uma regra de conduta ou princípio que era, não obstante, um constituinte físico das coisas (Kirk et. al., 2010, p. 192).

 

 

Estamos em face, por conseguinte, de um pensamento que nos foi legado, naquilo que tem de autêntico, de modo fragmentário, por um lado; e, por outro, reconstituído pela interpretação que dele foi feita por outros pensadores. A isso se acresça o não cumprimento por Heráclito de certas leis lógicas, o que dificulta ainda mais a exata compreensão de seu pensamento. Em todo caso, o que se seguirá é a interpretação, já bem assentada, feita na tradição de estudos sobre Heráclito. Essa tradição consagrou o termo mobilismo para caracterizar a concepção segundo a qual todas as coisas estão em movimento, em fluxo. De acordo com essa perspectiva, a realidade se caracteriza fundamentalmente pelo movimento. A filosofia heraclitiana tem sido caracterizada como mobilismo, portanto.

 

2.1. O pensamento de Heráclito

 

2.1.2. O governo do Lógos

 

O lógos encerra o pressuposto que dá sustentação ao edifício do pensamento dos gregos, particularmente dos cosmologistas conhecidos como pré-socráticos. Esse pressuposto consiste na afirmação de que o lógos é a racionalidade do real e a possibilidade de explicá-lo. O lógos é o universal, o entendimento humano, a racionalidade ou a razão. Tudo ocorre de acordo com o lógos; ele, o lógos, governa todos os acontecimentos.

Como princípio que expressa a coerência subjacente às coisas, o lógos é a ordenação comum a todas as coisas (Kirk, p. 193). Ao sustentar que tudo que acontece no mundo é governado pelo lógos, Heráclito pretende-se portador de uma verdade acerca da constituição do mundo, à qual os demais homens não têm acesso devido à incapacidade deles de auscultar o lógos, que parece codificar uma primeira verdade: todas as coisas são um. Com o lógos, afirma-se a unidade de todas as coisas.

O lógos, sendo uma medida comum a todas as coisas, é que sustenta e garante a unidade na diversidade de todas as coisas. Em virtude do lógos, todas as coisas, posto que sejam múltiplas e diversas, estão unidas numa totalidade coerente, da qual os próprios homens participam e cujo conhecimento é necessário para que eles conduzam suas vidas adequadamente.

O lógos é, provavelmente, para Heráclito, o verdadeiro constituinte das coisas e, sob muitos aspectos, coextensivo ao constituinte cósmico fundamental, que ele chama de fogo (Kirk, p. 194).

Constituindo todas as coisas, o lógos é ele mesmo uma razão divina, um lógos-deus, que se identifica com a totalidade de todas as coisas. O deus a que se refere Heráclito é imanente ao mundo. Não se trata, portanto, de um deus a que se deve render culto e não se diferencia essencialmente do lógos. Na medida em que o lógos divino constitui todas as coisas, torna-as também contrárias. É o lógos que garante o equilíbrio na mudança entre os contrários. Assim também deus é um elemento que liga todos os contrários.

 

2.1.3 A unidade dos contrários

 

Heráclito surge como o primeiro cosmologista que, decerto, intuiu a tensão criativa provocada pela guerra entre os opostos. Segundo o filósofo de Éfeso, quando tomadas em conjunto, todas as coisas constituem o todo e o não-todo; são, ao mesmo tempo, reunidas, compondo uma unidade, e separadas, formando a diversidade; todas as coisas estão em consonância e em discordância. Dialética heraclitiana, portanto: a unidade e o seu contrário coexistem.

Uma vez reunidas, todas as coisas compõem um todo contínuo. Na condição de não-todo, o que se destaca é a singularidade de todas as coisas, tomadas como simples componentes. A unidade de todas as coisas parece constituir o domínio essencial do real, ao passo que a diversidade de todas as coisas constitui o domínio superficial, das aparências do real.

Heráclito estava convencido de que os contrários nunca se dividem absolutamente. A unidade dos contrários coexiste com a sua pluralidade, e há entre pares diferentes uma ligação perene. O princípio defendido por Heráclito se articula a uma doutrina que considera o devir a base da realidade (o mobilismo). O que sucede com todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam; coisas frias esquentam; coisas secas umedecem, etc. A realidade é a mudança; é a guerra dos opostos. A guerra, a que se referia o filósofo, não se confunde com uma prática de violência; é a condição mesma para a harmonia e a paz. Como pensasse a realidade de modo dialético, afirmava que a doença é que faz da saúde algo bom e agradável; se não existisse a doença, dizia, não haveria por que valorizar a saúde. Fique claro, portanto, a relação recíproca entre os contrários, de modo que a existência de um deles justifica a existência do outro.

O filósofo entendia que os opostos coincidiam como o meio e o fim, em um círculo. Assim é que, por exemplo, a descida e a subida coincidem num caminho, já que o mesmo caminho é para descida e para subida. O frio, assim, é o mesmo que o quente, pois o frio é o quente quando muda; e o quente, o frio depois de mudar. Logo, frio e quente são dois aspectos de uma mesma coisa.

Heráclito buscou estabelecer um princípio que gerava todas as coisas; considerou-o  fogo. Para ele, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas. O cosmos é um só e se origina do fogo, e pelo fogo é consumido, em determinados períodos, que se repetem pela eternidade.

Gostaríamos, antes de por termo a esta seção, de fazer ver que a concepção de real de Heráclito como conflito entre os opostos pode ser contemplada numa canção de Lulu Santos, chamada Certas coisas. Destaque-se apenas a primeira estrofe, da qual se depreende uma concepção da vida que realça a natureza estruturante dos opostos (cf. som/silêncio; luz/escuridão; dia/noite; não/sim):

 

Não existiria som se não

Houvesse o silêncio

Não haveria luz se não

fosse a escuridão

A vida é mesmo assim

Dia e noite

Não e sim

 

 

 

2.1.4. O fogo primordial

 

No esforço de esclarecer o pensamento de um filósofo que recebeu a alcunha de O Obscuro, enfatize-se a ideia de que, segundo Heráclito, a tensão entre os contrários nunca os repele, mas lhes assegura a conexão. É por meio dessa tensão que os opostos se ligam, compondo um todo coerente. No entanto, é preciso ver que a coerência do todo depende da permanência de um equilíbrio entre os contrários. Se esse equilíbrio se tornasse um desequilíbrio, a totalidade complexa seria destruída. Por isso, a permanência do equilíbrio da totalidade cósmica depende de uma proporção nas discordâncias infindáveis entre os contrários (Kirk, p. 200).

“O mundo é um fogo sempre a arder” (Heráclito, apud. Kirk, p. 204). O fogo é a origem sempre viva e eterna de todas as coisas. É uma força primordial e em movimento que faz a partir de si todas as coisas e que se identifica com elas. O fogo é como a chama da vela, que arde eternamente, que se extingue e acende sem cessar.

Para os pré-socráticos, particularmente para Heráclito, a ordem do mundo é eterna, incriada. O fogo é o princípio da dinamicidade dessa ordem eterna e divina que é o cosmo. O fogo é o princípio da mutabilidade de todas as coisas em todas as coisas. Tudo se transforma em tudo. Todavia, o fogo heraclitiano não é a origem de todas coisas à semelhança da água para Tales e do ar para Anaxímenes, mas é a origem ininterrupta de processos naturais. O fogo é o constituinte das coisas que determina, de modo ativo, a estrutura e o comportamento das coisas (entendidas como processos). Ele garante não apenas a oposição entre os contrários, mas também a unidade através da discórdia. Uma das dificuldades para compreender o pensamento de Heráclito parece residir no fato de ele não se ter preocupado em seguir certas leis da lógica. Heráclito parece ter assumido a contradição como essência constitutiva do movimento do real.

O fogo é a causa material ou o princípio a partir do qual tudo nasce e perece. No entanto, não é propriamente o elemento último de todas as transformações; o fogo parece expressar e manifestar o lógos.

Não sendo fácil a compreensão do pensamento de Heráclito, todo esforço despendido para atingi-la deve dar conta da dinâmica constitutiva do real. Tudo flui, tudo muda. Tudo é feito pelo fogo e tudo se dissipa no fogo. Tudo está submetido ao destino. É o movimento que determina toda a harmonia do mundo. O destino é a lei universal (logos) e dá origem às coisas em decorrência do movimento dos contrários. O fogo é um elemento e tudo se faz pelas transformações do fogo, quer por rarefação, quer por condensação.

Heráclito chega a identificar o fogo com deus; sendo deus, o fogo é eterno. Vimos que o logos é um Lógos divino, donde se conclui parecer lícito dizer que fogo, lógos e deus são três nomes com que Heráclito caracteriza o movimento incessante do real. Retomando-se a ideia da dinamicidade do cosmo, com base nela se desenvolve a ideia de que o mundo resulta da luta dos contrários. Essa luta chama-se guerra. O movimento incessante do real expressa-se na descrição que Heráclito faz do modo como o fogo atua. O fogo, uma vez condensando-se, torna-se líquido e, portanto, água; a água, condensando-se, se transforma em terra. A terra se torna água, pela fusão, e da água se produz todo o resto.

Não obstante, não queremos sugerir que aqueles três nomes sejam tomados como sinônimos. O divino, para os gregos, é imanente ao mundo, mas é transcendente em relação aos homens. Essa ordem divina que se identifica com o cosmo era reconhecida pelos antigos como superior ao homem. Por isso, poder-se-ia dizer que, para os gregos, o divino (theion) é “transcendência na imanência”.

Heráclito uniu a razão humana à razão divina. É a razão divina que governa e confere equilíbrio às coisas do mundo. Heráclito acreditava que o homem é dotado de duas faculdades pelas quais ele poderia conhecer a verdade: a percepção sensível e a razão. Mas cuidava duvidosos os conhecimentos adquiridos pela percepção sensível, e via a razão como critério da verdade.

A razão a que se refere Heráclito é a razão comum e divina; é a que nos torna todos participantes do Lógos divino. Assim, o conhecimento que alcançamos da verdade decorre da lembrança dessa participação. Sempre que pensamos por nós mesmos, incorremos em erro.

 

2.1.5. Síntese da doutrina de Heráclito

 

É possível elencar o que se reteve aqui no tangente ao pensamento de Heráclito.

 

1) Afirmação da unidade de todas as coisas;

2) Todas as coisas estão em movimento incessante;

3) O movimento se realiza através da luta dos contrários;

4) O fogo governa e produz o processo cósmico;

5) O lógos é a inteligência divina que governa o real;

6) A sabedoria humana é participante do lógos.

 

 

3. Parmênides: o filósofo do Ser

 

Comecemos por referir o que nos parece ser o ponto de partida para a compreensão do pensamento de Parmênides.

 

A metafísica e a epistemologia de Parmênides não deixam lugar algum para cosmologias tais como os seus predecessores jônios haviam construído, nem certamente para qualquer espécie de crença no mundo que nos é revelada pelos sentidos (...) (Kirk, p. 251)

 

 

O que se seguirá é, portanto, nossa tentativa de elucidar a especificidade da filosofia parmenidiana em confronto com o pensamento heraclitiano.

Parmênides nasceu em Eléia, entre 504 e 500 a.C. Platão diz que Parmênides esteve em Atenas, onde se encontrou com o jovem Sócrates: contava, na ocasião, 65 anos. Como era comum aos pré-socráticos, Parmênides também participou ativamente da política. Ele foi o primeiro filósofo a expressar seu pensamento em versos. Seu famoso poema, cujos poucos fragmentos chegaram a nós, ostenta o título Sobre a natureza. Nele, o filósofo se representa como o Escolhido, aquele que transmite a Verdade e toda a Verdade pela Revelação que dela faz a sua Musa.

No entanto, no poema, a fala da Deusa não se expressa numa linguagem sagrada de mistérios. Ao contrário, é a razão quem fala. O poema apresenta uma estrutura argumentativa inteligível. O poema é filosofia. Ele se divide em duas partes: na primeira das quais Parmênides afirma que, em qualquer investigação, só há apenas dois caminhos possíveis, que se excluem mutuamente – o da existência do objeto de investigação e o da inexistência desse objeto.

Após um preâmbulo, o poema se estrutura em duas partes distinguíveis. A primeira parte ficou conhecida como a Via da Verdade (alétheia); e a segunda como a Via da opinião (dóxa).

Muitos comentadores cuidam que o poema foi escrito em oposição ao pitagorismo, que sustentava a dualidade ‘par-ímpar’ como origem do mundo e a Heráclito, cuja doutrina rezava que tudo estava em fluxo permanente e que havia uma identidade entre o uno e o múltiplo.

A filosofia de Parmênides ficou conhecida como monismo, porque constitui uma doutrina que afirma existir uma única realidade. É possível encontrar também o termo imobilismo para caracterizar a sua filosofia, já que Parmênides sustentou a imobilidade do Ser, que é o real em sentido abstrato e básico. Todo o movimento está excluído do domínio do Ser, conforme veremos. Todavia, não nos apressemos. Continuemos a seguir o roteiro delineado. Ao final do texto, explicitarei os pressupostos envolvidos no monismo parmenidiano.

Retomando a consideração do poema de Parmênides, é preciso notar que, a certa altura, ele nos diz “é necessário pensar e dizer isto: que o ente é; pois é ser; que o nada não é, pois (é) não ser”. Eis, portanto, a premissa única, com base na qual se constrói a argumentação de Parmênides:o ser é; e o não ser não é. Todo o seu ensinamento sobre o Ser repousa sobre essa premissa. Intimamente ligada a essa premissa, está outra afirmação de Parmênides, qual seja, a da identidade entre o ser e o pensar: “é o mesmo pensar e ser”. Esse enunciado deve ser parafraseado como: a racionalidade do real e a razão humana são da mesma natureza.

A doutrina do Caminho da Verdade distingue duas possibilidades de investigação, conforme já notamos anteriormente: a do ser e a do não-ser. A primeira possibilidade corresponde ao caminho da certeza, visto que conduz à verdade; a segunda é inacessível ao homem. Só há, para Parmênides, pensamento do ser. Sua doutrina se sustenta inteiramente sobre a afirmação segundo a qual “pensar e ser é o mesmo”.

Ao declarar a identidade entre o ser e o pensar, quis dizer Parmênides: a) que o que pode ser dito e pensado deve ser (existir); b) que o ser é o que pode ser pensado e dito. É necessário, no entanto, tornar patente a radicalidade dessa compreensão parmenidiana. A identidade entre ser e pensar (e dizer) deve ser compreendida da seguinte forma: Parmênides não diz apenas que só podemos pensar e dizer o que existe, mas sim que o que é pensável e dizível existe necessariamente. Por outro lado, ele não diz apenas que o nada (o não-ser) não é pensável e dizível; ele afirma, na verdade, que o que não é pensável nem dizível não existe.

Sumario, abaixo, as ideais de Parmênides, a fim de que as tenhamos em conta no que se seguirá:

 

a) o ser é; o não-ser não é;

b) o ser pode ser pensado e dito;

c) o nada não pode ser pensado nem dito;

d) o pensar e o ser são o mesmo;

e) o nada, portanto, é não-ser e impensável;

f) dizer e ser são o mesmo;

g) portanto, o nada é não-ser e indizível.

 

 

3.1. Lógica e Ontologia: a inovação de Parmênides

 

Para alguns estudiosos, Parmênides foi o primeiro pensador a formular dois princípios lógicos fundamentais: o princípio da identidade e o princípio da não-contradição. O primeiro reza que “o ser é o ser”; o segundo, que, se o ser é, e o não-ser não é, então o ser é idêntico a si mesmo e é impossível que ele seja o seu contrário, ou seja, é impossível que ele seja o não-ser. Assim também, sendo o nada o não-ser resulta daí que ele nunca pode ser pensado e dito. A afirmação do ser, portanto, implica ou requer a negação do não-ser. Em Introdução à história da filosofia – dos pré-socráticos a Aristóteles (2002), Chauí nota que “Parmênides teria descoberto a lei fundamental do pensamento verdadeiro, pela qual é impossível afirmar ao mesmo tempo uma coisa e seu contrário” (pp. 90-91).

Via da Verdade conduz ao ser, ao uno, ao indivisível, à unidade subjacente à diversidade. A Via da dóxa (opinião) é a via do falso. A dóxa se caracteriza por tornar possível e estimular o confronto de ideias contrárias, abonando a validade de ambas. A Via da opinião não observa, portanto, o princípio da identidade e o da não-contradição. Voltarei a considerar a oposição entre Via da Verdade e Via da dóxa, mais adiante.

Por ora, necessário se faz considerar o aspecto ontológico do pensamento de Parmênides. Com Parmênides, segundo alguns intérpretes, teria surgido o estudo do Ser ou o pensamento do Ser.

 

3.2. O que é o Ser, para Parmênides?

 

Desde já, não parece difícil supor que o Ser é, para Parmênides, a arkhé. A arkhé é o que é, é o ser, é o ente. Todavia, o Ser de Parmênides não é um indivíduo, como na frase “o cachorro é um ser amável”. O Ser parmediniano é o permanente, o imutável, é o real num sentido abstrato, básico. O Ser é a única realidade verdadeira e fundamental, que subjaz a toda a diversidade que se dá à nossa experiência sensível. Parmênides pensa o Ser como indivisível, uno, idêntico a si mesmo, imutável, fixo, pleno, eterno.

A compreensão do conceito de Ser depende da distinção entre dóxa e verdade, estabelecida pelo filósofo. Parmênides, então, assumirá que a dóxa é o caminho do não-ser. Por quê? Porque a opinião refere-se ao que parece ser. As opiniões são formuladas a partir das aparências das coisas, ou seja, a partir das formas como as coisas aparecem em nossa experiência sensível. Pela opinião, exprimimos nossas preferências, sentimentos e interesses, e eles variam de uma pessoa para outra, ou numa mesma pessoa, em circunstâncias diferentes. As opiniões também variam de acordo com as épocas; portanto, são mutáveis, instáveis, efêmeras. A dóxa é intimamente dependente da variação de estados de nosso corpo e das situações de nossas vidas. Ilumina-se, aqui, a oposição entre ser e parecer. As opiniões pertencem ao domínio das aparências. A aparência de uma coisa revela o modo como essa coisa se dá à nossa experiência imediata por meio dos nossos sentidos. Mas as aparências podem deixar de ser como aparecem. As aparências encobrem o ser, na medida em que podem não ser como parecem ser; elas são, por isso, o não-ser.

Na medida em que o ser é idêntico a si mesmo, é imutável, ele não pode revelar-se na experiência sensível, mas tão-só pelo pensamento. É necessário frisar: o acesso ao ser só é possível pelo pensamento. A aparência se mostra como tal na mudança contínua que sofre as coisas ou no devir, no incessante vir a ser das coisas, nesse domínio em que as coisas estão incessantemente tornando-se outras, estão mudando, se transformando, estão tornando-se o que não são. O devir é movimento (Kínesis – mudança qualitativa, quantitativa e locativa). Logo, é o movimento (o devir) o domínio próprio da dóxa e da aparência. Escreve Chauí: “(...) as coisas parecem mudar e as opiniões mudam com elas” (p. 92). O devir, na medida em que é aparência mutável, é o não-ser.

Estamos, agora, em condições de compreender de que modo opera o pensamento do Ser, em Parmênides. Trata-se de um pensamento puro (porque divorciado da experiência sensorial, do mundo das aparências mutáveis), que constrói uma argumentação cuja tese repousa na afirmação da identidade do ser consigo mesmo, ou da unidade da realidade do ser. Ser e real é o mesmo. Apenaso ser é real. As etapas do desenvolvimento argumentativo com que Parmênides pretende sustentar a natureza una, imutável e eterna do Ser serão discriminadas em subseções numeradas, a fim de que elas sejam mais bem apreendidas:

 

1) O ser é imóvel, ou seja, imutável. Se ele se movesse, se ele mudasse, se tornaria aquilo que não é. Ora, o que não é o não-ser, e o não-ser não existe; não pode ser pensado e dito, portanto;

 

2) O ser é eterno e indestrutível; logo não tem origem, não nasce, não perece, nem está no futuro. Se estivesse começado, o que havia antes dele? O não-ser, mas o não-ser não existe. Se o ser tivesse um término, também seria o não-ser que estaria depois dele, mas, novamente o não-ser não existe, nem pode ser pensado e dito;

 

3) O ser é indivisível ou contínuo, se ele fosse passível de ser dividido, o que seriam as partes? Não poderiam ser outros seres, já que o ser é uno, tampouco poderiam ser não-seres, já que o não-ser não existe; portanto não pode ser pensado e dito;

 

4) O ser é pleno, isto é, não encerra intervalos ou fendas em seu interior. Se não fosse pleno, o que seriam seus intervalos? O vazio? Mas o vazio é o não-ser; e o não ser não existe e não pode ser pensado e dito.

 

Considerados os argumentos 2) e 4) que aludem, respectivamente, à eternidade e à plenitude do ser, é possível inferir a ideia de que o ser é presença em excesso ou totalidade presente (dada totalmente) no agora (já que é eterno) e também de que é  completamente fechado em si mesmo ou bastante em si mesmo (já que é pleno e nada lhe falta). Não há carência no ser, não há insuficiências em seu interior. Todavia, é preciso enfatizar que o ser não é uma presença que se dá em nossa experiência sensorial, porque apenas o pensamento pode atingi-lo.

Entre as características com que Parmênides define o Ser, não está a infinitude. O ser não é infinito, mas limitado. Por mais estranho que nos pareça, Parmênides não afirma que o ser é infinito. A razão porque nega ao ser a infinitude é que, se o concebesse como infinito, acabaria por identificá-lo com o apeíron (Anaximandro) que, para os gregos, é o indeterminado, o infinito. O ápeiron é a arkhé de Anaximandro e designa um princípio abstrato que significa ilimitado, indefinido e que subjaz à natureza. Como seja indeterminado, pode crescer, reduzir-se, transformar-se indefinidamente, o que nos impede de pensá-lo, conhecê-lo, dizê-lo. Sendo incognoscível, o ápeiron seria o não-ser, para Parmênides. Mas o problema atinente à definição do Ser não termina por aí; Parmênides precisava ainda conservar a base racional das características que atribuía ao ser, quais sejam, a imobilidade, a eternidade, a indivisibilidade, a continuidade e a plenitudePara tanto, concebeu o ser como uma esfera, cuja circularidade é perfeita (entenda-se totalmente acabada). O ser não tem começo, nem fim; é indivisível, contínuo e pleno.

 

3.3. Breves notas sobre sua cosmologia

 

Parmênides foi o primeiro a demonstrar ser a Terra esférica e a pensá-la como situada no centro do cosmo. Para ele, existem dois elementos: o fogo e a terra. O fogo é criador; a terra, matéria. Os homens se originaram da terra.

Espírito e alma são, segundo ele, uma única e mesma coisa. Parmênides suprime do real a gênese e a destruição. O ser é eterno e imutável. Deus é imóvel, limitado e esférico. Tudo acontece por necessidade.

 

  

4. Heráclito e Parmênides: o Ser e o devir em confronto

 

Nesta seção, cumprir-nos-á estabelecer uma comparação entre os pensamentos de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia. No curso dessa comparação, retornaremos a Parmênides, a fim de que destaquemos os aspectos de seu pensamento que contrastam com o pensamento de Heráclito. Seguiremos, portanto, o sentido inverso ao que vimos seguindo: recordaremos Parmênides para recuperar, em confronto, Heráclito.

Mais uma vez, faz-se mister dizer que nada existe senão o ser. O ser é incriado, já que não pode nascer, nem do que existe, nem do não-ser. O ser é eternamente presente; sua natureza é perfeitamente homogênea. O ser é perfeitamente pleno, sem vazio e sem descontinuidade. É perfeito e finito.

Parmênides de Eléia, expoente da doutrina monista, segundo a qual existe uma única realidade base por trás do movimento percebido, introduziu e desenvolveu a distinção entre realidade e aparência. Destarte, ele situa o movimento no domínio da aparência; é o movimento um aspecto superficial das coisas. A verdadeira realidade é o Ser e só pode ser conhecida pelo pensamento que ultrapassa a experiência sensível. O Ser é imutável, não tem começo, nem fim; é contínuo, indivisível. O Ser identifica-se com o pensamento. Assim, para pensar o ser, o homem deve trilhar o caminho da verdade, da razão e afastar-se da opinião, que é mutável, porque formada de hábitos, percepções, impressões sensíveis, imprecisas e ilusórias. O Ser é o real numa acepção mais abstrata e básica.

Para Parmênides, ao contrário de Heráclito, o movimento não define o real. O filósofo do Ser defendia o pressuposto de que sem o permanente, o imutável não se pode compreender o mutável. A noção de movimento pressupõe, portanto, a de permanência. Melisso de Samos, discípulo de Parmênides, viria a defender o monismo contra os filósofos do mobilismo, afirmando que o Ser é eterno, imutável, atemporal e incriado (Marcondes, 2008, p.37 ).

A filosofia de Parmênides ficou conhecida pelo nome de monismo, visto que ela se expressa na forma de uma doutrina que afirma a existência de uma única realidade (a do ser) e, consequentemente, exclui da esfera do ser (o real) o movimento, a mutabilidade. O monismo parmenidiano é, tradicionalmente, entendido como uma doutrina que contrasta com o mobilismo heraclitiano.

Heráclito de Éfeso, filósofo da Escola jônica, era chamado “o Obscuro”, em virtude da dificuldade de interpretação de seu pensamento. Ele foi um representante do mobilismo, doutrina segundo a qual a realidade da natureza se caracteriza por um movimento contínuo. Tudo flui, ensinará o filósofo. Particularmente importante é o conceito de logos, em seu pensamento, já que por meio dele pode-se explicar a unidade da realidade. O logos é, assim, o princípio que unifica a realidade, é o princípio de racionalidade do cosmos. O cosmos, inicialmente, designava a ordem no mundo humano, visto que dizia respeito às ações humanas que se conformavam ao estabelecido; posteriormente, passou a designar a ação humana que produz a ordem no mundo; finalmente, com a filosofia, passou a designar a ordem do mundo.

Segundo Heráclito, tudo é movimento, tudo está em fluxo ininterrupto, mas atrás da mudança, da diversidade das coisas havia um princípio básico de unidade. Havia uma unidade na pluralidade. Essa concepção pode ser entendida como a expressão do conflito entre os opostos. Esse conflito produz o equilíbrio, porque os opostos se equivalem e se reúnem (dia e noite, calor e frio, vida e morte são opostos que se complementam). Em Heráclito, a pluralidade do real é acessível à experiência sensível. Sua filosofia centra-se nessa experiência. O fogo é, para ele, o elemento primordial, já que o fogo a tudo consome e se autoconsome, enquanto energia. Ele simboliza o dinamismo próprio da realidade.

O mobilismo, concepção segundo a qual todas as coisas estão em movimento, em fluxo perene, caracteriza a doutrina de Heráclito. Ao contrário de Parmênides, que afirma a imobilidade do ser, Heráclito sustenta que tudo é movimento, tudo está em fluxo, muito embora ele não negue que a realidade possua uma unidade básica. Não deixa de ser curiosa a afirmação heraclitiana de que há unidade na pluralidade. Se Heráclito não deixa de admitir a unidade como uma dimensão do ser; pensa a estrutura do ser, todavia, como atravessada pelo movimento, pela mutabilidade das coisas, pela luta dos contrários. A unidade a que se refere Heráclito é unidade dos opostos. O real ou o ser heraclitiano é profundamente marcado pelo conflito e é do conflito que nasce o mais perfeito equilíbrio. Se, em Parmênides, o devir é o não-ser; em Heráclito, o devir é o próprio movimento do ser. Em Heráclito, o mundo todo, a realidade sensível é caracterizada, fundamentalmente, pela impermanência de todas as coisas. Tudo flui, tudo se move, muda, se transforma. O mundo heraclitiano é um mundo em fluxo incessante, um mundo onde só permanece estável e inalterável o lógos, ao qual cabe reger a inevitável transformação de todas as coisas. Se a arkhé de Parmênides pode ser vista como o ser; a de Heráclito é o fogo, enquanto metáfora, não propriamente (ou não apenas) como elemento natural. Pondere-se, contudo, que não está claro como o ser parmenidiano possa ser considerado uma arkhé, tal como a pensavam seus predecessores. A arkhé pressupõe a existência de um princípio primeiro, de algo que, existindo previamente, dá origem a tudo que há. O ser de Parêmides não parece ter essa característica (nada existe anteriormente a ele). O ser de Parmênides é pura e simplesmente, na sua imediaticidade totalizante. Nada se pode dizer do ser exceto que ele é.

 fogo heraclitiano, como arkhé, representa o caráter dinâmico da realidade. É a origem de todas as coisas; é origem eterna, é movimento incessante. A partir do fogo, todas as coisas se formam. O fogo põe todas as coisas em movimento e se identifica com elas.

Convém, no entanto, aqui, retornar a Parmênides, tendo em vista o confronto com o pensamento de Heráclito. Vimos que a dóxa (opinião) identifica-se com a Via da experiência sensorial (que também Heráclito via como fonte de enganos). Em alguma medida, epistemologicamente, Heráclito e Parmênides parecem concordar: o conhecimento da verdade não decorre da percepção sensível, mas depende de que os homens auscultem o lógos (a razão divina).   A Via da Verdade, em Parmênides, é a do pensamento puro, do intelecto apartado das sensações. O pensamento identifica ilusões onde sentimos coisas mutáveis e contrárias entre si. Segue-se daí a oposição entre o mundo inteligível (paremnidiano) e o mundo sensível (heraclitiano), oposição que será tematizada e convertida em doutrina cosmológico-epistemológica por Platão. O mundo inteligível de Platão será o mundo parmenidiano (o mundo verdadeiro, dotado de maior grau de realidade), ao passo que o mundo sensível, que Platão identificará com o mundo das aparências, das ilusões, é o mundo heraclitiano.

Só há o ser, que é uno, eterno, contínuo, indivisível e imóvel. Só há o pensamento do ser; para o pensamento, o múltiplo e o movimento não são, ou seja, pertencem ao domínio do não-ser (o devir, em Parmênides). A mudança e a mutabilidade – vale insistir – estão excluídas do ser. O devir e o múltiplo são o não-ser, portanto o impensável e o indizível.

Em Parmênides, vimos que o ser, o pensar e o dizer é o mesmo; assim também o não-ser, perceber e opinar é o mesmo. Há, para Parmênides, dois tipos de filosofia: a que se refere à verdade e a que se refere à opinião. Identificando o pensamento com o ser, Parmênides nega ser possível pensar a instabilidade, o imutável, de modo que, do ponto de vista epistemológico, só haveria ciência do ser, ou seja, do imutável, do que é constante, imóvel. O pensamento, assim, exige estabilidade, coerência, permanência e verdade; por isso, para Parmênides, não há pensamento do devir; só há pensamento do ser. Para o pensamento, perceber, opinar e não-ser é nada. Heráclito, aqui, diverge de Parmênides, visto que o devir pode ser objeto de pensamento; mas é nessa divergência que parece ser possível ver, paradoxalmente, uma convergência entre eles, pois que Heráclito não renuncia à ideia de uma unidade subjacente à diversidade, sem a qual a própria dinâmica dos opostos não seria pensável. Trata-se, então, de ver explicitamente assumido e elaborado em Parmênides aquilo que Heráclito supõe: a unidade do real. Em Parmênides, a unidade é uma propriedade fundamental do Ser que não se revela senão ao pensamento, essa unidade exclui a diversidade da totalidade do Ser; em Heráclito, contudo, essa unidade é suposta como condição para pensar o devir; daí a possibilidade de o filósofo de Éfeso poder falar em unidade dos opostos.

 

 5. Conclusões

 

Os filósofos pré-socráticos, por se preocuparem em estudar a physis, ficaram conhecidos como physiologoi, ou físicos. De um modo geral, eles estavam interessados em determinar um princípio primordial que teria dado origem à ordem do mundo. Tales de Mileto, por exemplo, o primeiro filósofo, o fundador da filosofia grega, sem fazer apelo ao sobrenatural, explicava a natureza adotando como princípio gerador a água. Anaximandro, a seu turno, discípulo de Tales, propunha o apeíron (o indeterminado, o ilimitado), que é um princípio abstrato. Coube a ele falar também em arkhé com o sentido já referido. Anaxímenes propôs o ar como princípio primordial, ou seja, como o arkhé. Sendo um elemento incorpóreo e invisível, o ar permitia ao filósofo dar uma explicação de caráter mais abstrato para o real. Xenófanes, a seu turno, concebia a terra como o princípio primordial.

Finalmente, elenco abaixo, com base em Chauí (2010, pp. 48-49 ), as principais características do pensamento grego na sua fase pré-socrática:

 

1) a filosofia nascente era uma cosmologia e, como tal, estava interessada em explicar racionalmente a ordem do mundo, o que implica determinar suas causas, sua forma, compreender suas transformações;

 

2) Era uma filosofia que não admitia que tudo que existe viesse do nada, por isso assentava no pressuposto de que “nada vem do nada e nada retorna ao nada”. Não há, portanto, criação a partir do nada (como sucede na narrativa do Gênesis em que o Deus judaico-cristão cria o mundo a partir do nada). Assim, o real sempre existiu, pois que é eterno, imortal. Há uma força imperceptível, mas imperecível que conserva a estabilidade e a permanência, malgrado a mutabilidade da superfície das coisas;

 

3) Era uma filosofia que se ocupa do estudo da physis, que é a base de tudo que existe. Ela é perene e dela tudo brota, tudo deriva;

 

4) Era uma filosofia que tinha de lidar com o problema do devir (a existência inegável da mudança das coisas, do movimento, do fluir incessante) relativamente à possibilidade de o real poder ser pensado. O pensamento só pode pensar o imutável, o permanente, o Ser. Como o uno, o idêntico a si mesmo se torna múltiplo, diverso? Pressupondo o uno (physis), como pode ele produzir o diverso, o diferente de si e mutável? Pressupondo o múltiplo (kósmos), como, então o uno é possível?

 

5) Finalmente, era uma filosofia que fundou a distinção, posteriormente explorada por Platão, entre a aparência do mundo e a essência ou verdade do mundo. O domínio da aparência é acessível à experiência sensorial; o da essência, à experiência do pensamento, intelectiva, portanto. Pelo pensamento, busca-se atingir (entenda-se compreender) o ser. Assim, a physis, que é manifestação da arkhé, torna-se, manifesta ao pensamento, e não mais só para os olhos do corpo. Com o decorrer da filosofia pré-socrática, a physis passará a ser visível apenas para o pensamento e oculta para a experiência sensível.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CHAUÍ, Marilena. Introdução à filosofia – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

JAPIASSÚ, HILTON; Danilo Marcondes. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

 

KIRK, G.S et. al. Os filósofos pré-socráticos – história crítica com seleção de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da filosofia – Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2008.

 

 

 

 



[1] As datas de nascimento e morte não são precisas, já que, em grande medida, o que se sabe sobre os filósofos pré-socráticos nos chegou por registros de outros filósofos. Segundo Diógenes, por exemplo, Parmênides teria nascido entre 504 e 500 a.C, no período da 69ª Olimpíada. A data foi fornecida por Apolodoro (Chauí, 2002, p. 87).

[2] O devir heraclitiano se caracteriza pela impermanência de tudo, pelo movimento de todas as coisas. O devir é, então, a lei universal: nada é, tudo flui (Japiassu & Marcondes, 2008, p.72).